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Olhos de Cadela, livro de estréia de Ana Mariano




Logo no início de A Arte da Poesia, Ezra Pound menos censura do que questiona a funcionalidade de um certo tipo de metáfora. O grande mestre da vanguarda sustenta que compósitos imagéticos do tipo “dim lands of peace” (brumosas terras de paz) deveriam ser evitados. Para Pound, a relação aí estabelecida obscurece a imagem, mistura o concreto ao abstrato. O conceito poundiano de “linguagem eficiente” supõe o poema como a conquista da precisão e da clareza. Preceito, aliás, que o próprio poeta não consegue transferir para a sua obra máxima, Os Cantos. De qualquer modo, Pound quer dizer que quando for necessário usá-la é preferível lançar mão da metáfora, digamos assim, mais “natural” em detrimento daquelas variedades mais artificiosas ou abstratas.


A metáfora corresponde a uma vertente da fanopéia (a projeção de uma imagem visual sobre a mente). E esse verdadeiro fotograma ou frame verbal, em muitos casos constitui o insumo fundamental para a construção do poema. No que respeita aos poemas do livro de estréia de Ana Mariano, Olhos de Cadela (L&PM, 2006), não há como escapar à constatação de que uma pulsão de cinema em versos está em jogo no seu embate com a linguagem. Mas, a metáfora da poeta não é bem “a projeção de uma imagem visual sobre a mente”. Parece-me que no caso de Ana Mariano, seu complexo imagístico antes se projeta na carne, ou melhor, transforma num combusto o corpo desejante e desejável do leitor abandonado ao contato sigiloso com o corpo do texto.


Carnações metafóricas, imagens encarnadas embebem os poemas de Olhos de Cadela. Ana lambe os beiços ao saborear os próprios textos que vai produzindo: “Desejo montando ancas”. E perturba o poema ao injetar nele eventos “comuns demais”, que não deveriam constar de sua fatura: as “cinco caixas de morango” negociadas pelo menino na calçada; o “excesso de riso e celulite”; “o ruído da chaleira”, música da cotidiana aurora dedirrósea, etc. Não é o fino tecido do papel, portanto, o suporte da metaforização mais corpórea do que mental de Ana Mariano, mas sim o corpo e sua topografia de memória seduzida. Os vales mais dolorosos, as ranhuras dos gozos sempiternos. Memória que se deixa assediar pelo imaginário, pela plasticidade. Dissipação de biografemas na paleografia tensa-tenra do corpo e sua brevidade heróica nesta vida não livresca de “aquém-túmulo”. Leio à boca pequena: “(...) Em vão busquei apoio no cheiro das goiabas,/ tua carne de sonho,/ abstrata,/ diluía o mundo conhecido./ Entre os bambus, eu te avistei,/ macia e nua.”


Mas, em Olhos de Cadela não só a metáfora e suas imagens serpejantes trazem o hálito, o índice de um corpo presente, ou prestes a se dar, ou mesmo a inquietude do que lateja ao alcance da mão. Ana escreve alguns textos que quase podemos “pegar com a mão”, tamanha é a ênfase em sua materialidade. Os efeitos estéticos ficam presentificados. No poema “Revoada”, a velocidade da brusca travessia dos pássaros desestabiliza a última “estrofe” do poema; o vento da vontade de linguagem dispersa as palavras na página. Em “Ensinamentos”, Ana Mariano materializa, mimetizando o recurso da colagem, a “letra enfeitada” do “quadrinho de azulejos pendurado na cozinha”, isto é, a poeta transcreve o dístico-clichê composto numa tipografia kitsch, afeita ao lirismo doméstico; afetação, afecção da afeição. É como se o leitor se deparasse com uma “ilustração” in absentia. Quase podemos apalpar o pequeno ícone, mas ele não se acha ali; dissipa-se entremeado ao erradio trânsito das palavras.


Ana Mariano quer mais que o símbolo: “De que serve um amor só de palavras...”. E ela está em boa companhia, pois segundo Octavio Paz, a imagem deve ser encarnação. Linguagem que atravessa estados de corpo e suas espiras. “Amor” não parece ser o nome apropriado para esse amor que a poeta franqueia ao irredutível desejo do leitor: sua pulsão, seu sorvedouro impreciso e sem avesso. Ana, essa “menina à espera”, tenta converter em música metafórica, em estrutura, o incongruente da tensão afetiva, a desmesura corrosiva dos sentimentos, os musgos da água escura onde a carne, nem alegre nem triste e por meio da memória, mergulha industriosa no pathos de sua “antiga inocência”.

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