O alto modernismo, e mesmo a sua transfiguração mais recente, mais hard – em termos de fundamentação teórica –, isto é, as vanguardas de 1950/60, passam por um processo muito rápido de canonização. Em outras palavras, se historicizam - se a afirmação no fosse um tanto absurda - de uma maneira bastante abrupta e surpreendente, inclusive porque, não podemos nos esquecer, os registros ou o anedotário da resistência, seja ao modernismo, seja à poesia concreta, formam uma pequena história à parte. E tal resistência, pelo alto teor arrivista assumido por suas posições e contraposições, não dava sinais de fácil assimilação ou trégua.
Toda a polêmica em torno do problema contribuiu, ao fim e ao cabo, para fazer da recusa conservadora e alarmista, aceitação incondicional. Cedendo, o senso comum ofereceu as condições necessárias para que o alto modernismo viesse a se tornar “uma das manifestações mais oficiais da cultura ocidental”. Se alguém não sabe ainda, podemos mencionar que a arquitetura da capital brasileira, por exemplo, é modernista.
A pós-modernidade, portanto, visa a buscar algumas identidades irremediavelmente tragadas pela ruptura em abismo do modernismo e das vanguardas. E em seu movimento algo regressivo (a definição-boutade de Haroldo de Campos para o caso é a de “ecletismo retrô”), o pós-moderno chega a incorporar discursos, por assim dizer, pré-modernos a pretexto de colher no ar outras essências constituintes do perfume da tradição.
Os patriarcas do moderno e das vanguardas, ao banalizarem e transformarem o “novo” no interpretante final, ou melhor, ao ideologizarem-no de cima para baixo e de lado a lado, acabaram fazendo terra arrasada de uma série de experiências criativas. A pós-modernidade pretende, assim, vasculhar e recuperar algumas dessas experiências que restariam em zonas de exclusão demarcadas por nossos pais fundadores. Se ela é bem sucedida ou não em suas intenções revisionistas, isso já é uma outra história.
Cabe aqui abrir um parêntese para comentar, embora de passagem, um momento de uma experiência poética exemplar que, por sua vez, coincide com o estado de espírito da pós-modernidade. Iacyr Anderson Freitas na seção “A poética do escasso”, de seu livro A soleira e o século (2002), reconsidera os “grandes nomes” da nossa tradição filosófica e literária desde o limite de suas contradições: “Urge voltar, e vencer o gênio/ que outrora nos fechara a porta”. O poeta mineiro identifica nesses sujeitos um apetite pela “beleza difícil”, razão pela qual usa a metáfora da “porta fechada” para representar os desafios implicados no contato com as suas obras. Mas, Oswald de Andrade escreveu, não me lembro onde, que o gênio é uma grande besteira. Com efeito, Iacyr faz o seu impassível acerto de contas com um elenco desses gênios, ou seja, sem aquela competitividade irônico-bombástica característica do antropófago de 22, pois o poeta contemporâneo, e das Gerais, se considera a si mesmo na transação de re-visitar os encostos canônicos, veja-se neste excerto: “Desses muitos livros nos livramos/ como quem se esquece de si mesmo”. A soleira e o século, uma bela reunião de livros de poemas compondo um percurso poético bem demarcado (1993-2002) de Iacyr Anderson Freitas. Parêntese fechado.
A diversidade de procedimentos de linguagem que podemos verificar na pós-modernidade é equivalente àquela que acabamos por constatar também na tradição quando nos debruçamos de modo interessado sobre ela. Talvez a tradição seja até mais rica e complexa do que o próprio presente. Inclusive porque há toda uma história de leituras controversas a seu respeito. Vale dizer, as versões que o presente engendra sobre os eventos que foram, visam a estabelecer um arco de sentido para o gesto aparentemente sem antes nem depois com que dimensionamos o instante precário. Nosso interesse pelo presente irredimível é destilado do passado. Nos relacionamos com a tradição a partir de angulações sincrônicas. Colhemos em nossa noosfera aquela “tradição viva”, de que falava Pound, capaz de falar ao presente ou de comentá-lo. Trata-se de um processo de seleção e de combinação.
Na contemporaneidade, no presente multifacetado, a necessidade de escolhas e de perspectivas crítico-valorativas, torna-se cada vez mais necessária. Tal afirmação parece bater de frente com o vale-tudo relativista em que estamos imersos. Todos os discursos devem ser considerados democraticamente. Voz e vez para todos. Eis algumas divisas, ou idéias-feitas que aprendemos a apreciar, quando não a necessitar. A questão é que essa tolerância resulta na censura politicamente correta das pulsões problematizadoras e equívocas do pensamento-arte, cuja incapacidade para nos ministrar conhecimento, produzir saber ou resolver impasses de ordem psicológica ou social, constituem os termos do seu cartão de visitas; seu selo de distinção.
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