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ouvir o coaxar das estrelas




Sempre é bom começar com perguntas. Alice Ruiz: “quantas coisas/ um sonho quer dizer/ e não diz?” (Yuuka, 2004). A simplicidade com que a poeta refere sonho, quando quer dizer poema, me leva a pensar em toda a fortuna crítica que nos últimos anos se vem acumulando sobre o haikai. Quantas definições tentam dar conta do haikai e não o conseguem. Paulo Leminski, para lembrar outro inventor no gênero, diz que os títulos das três partes em que se divide Os Sertões de Euclides da Cunha, ou seja: A Terra - O Homem - A Luta, formam assim, por justaposição direta, um verdadeiro haikai que faz as vezes da Ilíada brasileira. Por aí já se vê o problema que é aventurar-se na tentativa de definição desse objeto verbal de três versos.


Ampulheta (Editora Casa Verde, 2007), de Berenice Lamas, cujas várias etapas construtivas tive a chance de acompanhar com entusiasmo, traz as vantagens e os óbices inerentes a essa condição indecidível que define, em parte, o haikai “fora-do-lugar” como algo transculturado. Isto é, o haikai é uma invenção, no sentido em que era inexistente ou parecia ser impossível e impensável em português ou em qualquer outro idioma que não o japonês. E, como invenção, o que importa, hoje, é a margem de liberdade com que trabalha o poeta na re-acomodação dos seus dados visando à criação original.


Portanto, no livro de Berenice Lamas convivem, sem intransigência, tanto haikais mais reverentes ao “espírito” tradicional, quanto outros, digamos assim, mais miscigenados. Neste rol, entram também os poemas breves, por exemplo: “computadores, vínculos/ carros de última geração/ o mundo se liquefez”. Ouço aqui, um pouco da melopéia do Oswald de Andrade antropofágico, e que nunca fez haikai.


A poeta sabe, como sabia Hattori Tohô, um discípulo de Bashô, que o haikai admite muitas “formas de canto”. Por esta razão, a autora aguça seu apetite para outros sabores e “morde a polpa” de outras formulações de linguagem. Em alguns casos, podemos vislumbrar o desbordar das fronteiras dos gêneros, nem haikais, nem poemas-minuto, antes, aforismos, inscrições epigramáticas atentas aos recursos da função estética da linguagem, assim: “a música preenche as paredes/ as paredes têm ouvidos/ ouvidos de mercador”. E resíduos de memórias e biografemas recriados pelo elíptico da poesia: “poemas na folha/ dispersos esparsos/ não lês”. As tensões de sensibilidade que Berenice Lamas desentranha de si mesma são transladadas ao desejo de linguagem do leitor.


Esta série de imagens e recursos alcança seu ponto de fusão na vocação da autora para a estética da brevidade e no seu ânimo não-discursivo. O poema que lhe cabe: idéias tornadas signos, desenho de sons na pauta mental, ou: “barco no azul/ arroz com azul/ mulher de azul”. Berenice Lamas faz o haikai dos seus sonhos encontrar sua poesia feita de ângulos dúcteis, de dobras e cortes precisos.



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