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a prosa pop de bracher em Meu amor


No tocante às preferências (e quase se poderia falar em prerrogativas) da abordagem estética contemporânea relativamente às fronteiras entre os gêneros literários e artísticos, é quase um fait acomplit se dizer por aí que aquelas obras em que se pode referir índices de hibridismo, ou de cruzamentos discursivos, estão condenadas, por assim dizer, a uma recepção positiva e tolerante. Com efeito, poder-se-ia ainda perguntar: dentro de um traçado de rupturas e de apagamento dos limites sígnicos inaugurado e suportado pelo alto modernismo (o versilibrismo projetado no espaço da página, o romance-rapsódia, a assemblage, etc.) e que, desde então, parece ter se constituído no cânone da representação que lhe segue, o que pode a mera reiteração de uma conquista injetar de novo em tal corrente sangüínea? O autor que decide tomar como ponto de apoio para o construto de seu texto a imagem de uma obra em devir, cuja estrutura maleável não admite que se lhe enquadre nem na poesia, nem no conto, nem no teatro, nem em parte alguma, passa de uma hora para outra a figurar como uma entidade a ser considerada e tida em alta conta. Assim, o press release fornecido pela Editora 34 com a intenção de apresentar, e inflar o quanto possível, o valor do volume em tela, que reúne dezoito ou dezenove narrativas não muito longas, destaca “o arrojo com que Beatriz Bracher experimenta e questiona os limites que separam os gêneros literários” (grifo meu). Muito bem, a autora parece cumprir satisfatoriamente um requisito básico dentro de uma expectativa presente acerca do fazer ficcional e artístico dos nossos dias.

Tudo em Meu amor, primeiro livro a enfeixar os contos de Beatriz Bracher — roteirista e autora do romance Antonio, Prêmio Jabuti, 2008, 3o lugar —, parece apontar para uma pulsão maneirista da autora na re-acomodação dos dados estilísticos referentes à literatura e à prosa contemporâneas. Mas, se bem vistas as coisas, constatamos que não há um efetivo arrojo implicado em seu procedimento composicional, porquanto a autora, me parece, só faz reprisar na maior parte de seus contos, além do requerido alargamento liminar do seu gênero, esse “cinema falado americano” imiscuído nos recursos naturalistas de narrar e compor, verificável, inclusive, no trabalho de boa parcela dos seus pares. Mais do que desprovida de um apetite para corroer o fragmentário que supõe, agora, a fusão — numa massa textual vagamente literária —, por exemplo, dos gêneros biográfico, cínico-reflexivo e histórico enquanto normas da nossa mentalidade, Beatriz Bracher se revela desenvolta dentro desse estado de coisas. Dá continuação a uma forma de prosa, digamos para começar, “bem adaptada” às necessidades do fruidor. A autora pratica uma espécie de “freestyle” literário. Contrabandeia os insumos de linguagem que vêm das ruas e da fala de todos os instantes e que inundam por sua vez os meios e a ficção audiovisual, levando-os até o paladar médio dos aficionados e ficcionistas do mercado literário de agora-agora.

Meu amor põe a nu e faz o elogio cínico do falso português relax de uma classe média traumatizada com a violência e a irracionalidade nas quais está implicada de modo pró-ativo. Sua vitimização às vezes beira a distinção. Língua de pequenas celebridades encurraladas entre usurários e favelados atenuando seus transes num vago budismo de inspiração nagô, e que aos poucos começa a ser “disponibilizado” inclusive aos executivos do segundo escalão. Deste modo:

Ele estava no escritório da sua casa, dele, ela entrou e perguntou o seu endereço. Precisava do endereço para mandar um convite. Ele deu o endereço, não achou ruim a vinda dela, nem boa, deu o seu endereço, ela foi embora. Houve uma pequena falha, um número do código postal errado, e ele a procurou para corrigir o erro e comentou que talvez não pudesse aceitar o convite dela... (pág, 22)

Claro que neste procedimento a autora deposita um propósito estético, evoca um pano de fundo mental. Ela o faz na perspectiva de um efeito de linguagem. Não se trata de questão de imperícia. Por outro lado, o prosador standard pode ser figurado como aquele sujeito que tem uma ideia mais ou menos clara da clientela a que serve, ao contrário do poeta que nas ocasiões em que se dispõe a apresentar sua identidade como “a voz” por detrás da linguagem, mesmo assim costuma se refestelar mais com o solilóquio do que com qualquer outra coisa. Ou seja, para o prosador o leitor se converte numa entidade essencial. Digamos que ele o vê como a face subjetiva do mercado editorial, um índice epifânico deste segmento humano, agora visado como um público potencialmente fiel que forma uma classe de interlocutores e que, por diversos modos, dá continuação às produções de tal série literária. Sendo assim, para o narrador, é vital saber quem é e como reage esse leitor frente aos seus estímulos. Então, onde, no caso de Beatriz Bracher, termina sua escolha por esta forma ou aquela de discurso, e onde começa sua preocupação em atender a demanda de um público de leitores-seguidores? À diferença do feito perpetrado por Poe que ao inventar o conto policial acabou por inventar o leitor para esse modo de escrita, a prosa contemporânea submete sua capacidade de invenção aos limites de linguagem desse leitor que, cada vez mais, se mostra satisfeito em afivelar a máscara de internauta, flâneur voraz do fragmento, da informação básica e do conteúdo sem cotejo.

Mas, no mesmo conto, algumas páginas mais adiante, Beatriz Bracher esboça pequenas incisões experimentais no corpo do texto. Como todo experimento, o risco e o riso da arbitrariedade rondam. Alguém já disse que o texto literário não deixa transparecer em sua economia genésica toda a gama de vacilações, de rasuras, ou até mesmo, de escarificações envolvidas no desentranhamento do neográfico no interior das convenções do discurso literário. Já que quando é dado por embalsamado, isto é, quando acaba num livro, aquilo que era febril e fabril resta apagado de uma vez por todas. Assim, em duas páginas do conto em causa, a autora resolve trazer à superfície da materialidade textual esse esforço heurístico e quase que físico do escritor no corpo a corpo com a linguagem, na tentativa de reencenar a pulsão tanto indicial quanto icônica do verbal; essa “estranha esgrima”, metáfora escolhida por Baudelaire para representar o artesanato, a oficina irritada e irritante do escritor tatuando a folha incólume. Para tanto, Bracher simula o industrioso e ocioso trabalho da escrita no encalço do melhor efeito aplicando em alguns pares de palavras, a saber: “memento-momento” (pág. 24); “redundância-similaridade”; “minha-dele”; “vir-ir” (pág. 25) dois sinais visuais: um traço contínuo que corta sempre a primeira palavra da parelha, e outro que da mesma forma sublinha sempre a segunda palavra do compósito. Esses sinais podem nos sugerir, num primeiro passo interpretativo, o seguinte: o primeiro, a rasura, o apagamento, ato de recusa; o segundo, a escolha, ou o que deve ser levado em conta, não obstante a sombra incômoda da palavra precedente que embora “descartada” ainda pode ser entrevista e, portanto, capaz de emitir um rumor de significações.

Em vários momentos de Meu amor, a autora nos coloca numa situação sem escape. Isto é, às vezes se torna difícil discernir entre o que é bom e o que não é. Mas, Bracher não anda sozinha nessa incômoda virtude. Nos últimos tempos os estímulos sobre a sensibilidade aumentaram em progressão geométrica e produziram digamos assim, figuradamente, um novo surto do “mal de Usher”, de que trata o breve e conhecido conto de Edgard A. Poe, “A queda da casa de Usher”, onde se descreve a mórbida agudez dos sentidos do personagem, o embotamento da percepção pelo extremo requinte. Com efeito, ao chegarmos a essa condição de leitores saturados conseguimos reconsiderar ao menos como ironia, o conto de Poe como a metáfora feita à medida para o nosso agora-agora. O altíssimo grau informacional e a rosácea de referências exigidos pela literatura de culto do pós-tudo, e o risco-oportunidade de repetição ou de inovação que nos ronda, “otimizaram” a tal ponto o nosso faro experimentado e de fundo burguês, que só conseguimos suportar ou levar em consideração, agora, as formas mais insípidas de poesia e a fruir textos de ficção que aceleram a fragmentação do real fazendo a leitura se dissipar numa transpiração intransitiva.

No conto “Davi”, por exemplo, acompanhamos a autora investindo no gosto pelo vulgar e pelo piegas em locuções como “ter você dormindo ao meu lado era tudo o que eu queria”; “O último instante que a memória guarda é o rosto de um menino uivando no vidro preto da janela de um banco”; “...eu precisava te agarrar com força, te morder, eu precisei de você ontem de noite...”, etc.. Mas esses detalhes ainda poderiam ser abonados pelo próprio título do livro. Enfim, estes elementos são indissociáveis do uso pesado da fala natural a conduzir as narrativas e acabam plasmando frases surradas e hiperbólicas de gosto suspeito, como as que apresento aqui: “Dedos frios com membranas aquáticas a uni-los...”; “Meus sonhos ainda vivos desenrolam-se, cobras e lemas e pedras e paus mexendo-se dentro do estômago...”; “Ver o garoto de joelhos pedindo para não morrer me sufocou (...) seus dentes batendo na boca do cano do revólver...”; “Meus olhos pulam de horror, as mãos crispadas na boca aberta e hirta, sem qualquer possibilidade de voz...”; etc. E “My Love”, peça que encerra o livro, se apresenta como o maior exemplo desse lugar incabível onde o bom e o ruim se mesclam para apontar e acender quem sabe a centelha insuspeita das singularidades discursivas do modelo de conto de Beatriz Bracher. O conto-poema-canção por onde o conjunto de narrativas termina, se parece com a letra de uma canção pop, de uma balada açucarada à espera de uma melodia previsível. Não é difícil ouvir:

Please, don’t
Let me down
Write me a letter
Say a word

(…)

I beg you
now and for ever,
leave my never ending love
alone

Leio provisoriamente a canção “My Love” como se fora a chave léxica da reunião desses contos. No sentido em que sua afetuosa alusão ao território pop, quer por sua mundanidade que nos abriga, quer por seu apelo emocional à realidade, consiste em tentar descobrir o interditado, a cifra de outra narrativa criativa, em tudo que fora considerado indigno de atenção e, ainda menos, próprio da arte da literatura. A inspiração de base de Meu amor é de caráter duchampiano, referência onde deita raízes a pop arte da década de 1960. Bracher, à maneira de um artista pop, arrisca-se na fratura do cânone. Para a prosadora, e do mesmo modo para o pop, as coisas e as mitologias parecem melhores quanto mais vulgares e baratas sejam. Em seus contos somos obrigados a perceber uma representação sem relevo e descarnada do cotidiano que tem tanto de lirismo quanto de materialismo. Os dilemas de muitos personagens denunciam um vazio espiritual e um ambiente em que a violência é ridiculamente espetacularizada. Meu amor deixa de lado a fenomenologia da composição em detrimento de uma fenomenologia do fragmento, do descartável como manchete (substituto do pensamento) que vira a fala, o bordão de um dia apenas, e do ready-made, aplicados sobre a superfície de um discurso em relação ao qual a autora poderia dizer (parodiando um dos seus personagens): “Quero pensar que não escrevi, que só falei e, por isso, deixei ir, assim como a história deles, não fui eu a dar-lhe a forma que ficará sendo”. Ou ainda: “...as palavras que aprendeu, as frases que outro falou antes dela, repetindo o que ouviu de outro, que por sua vez — lugares-comuns...”. Um tranco sutil, um incômodo; melhor: uma incomodação — é isso mesmo que põe a literatura em movimento? O percurso inacabado do roteiro ao conto.


(dei uma resumida neste texto para a publicação aqui no poesia-pau, em www.sibila.com.br o leitor encontrará a versão integral)

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