cândido rolim
PAULO ALEX SILVA SOUZA - Você acredita que há efetivamente uma crise da razão, o que leva ao ressurgir da fala dos mitos na poesia? Em caso afirmativo, qual resposta reclama essa crise?
Ronald Augusto - A condição de crise é como que a “razão de estado” da razão. Isto é, desde que a razão tornou-se Razão, ela se nutre das suas contradições. Se uma “fala dos mitos” se levanta de maneira a resolver uma tal crise, isso me parece uma resolução com algum grau de consciência. Há um precipitar-se nesta direção. A rigor, em poesia, não há essa fratura definitiva entre a razão e a fala dos mitos. Cito por exemplo dois poetas que talvez, nesse ponto, pudessem ser confrontados comparativamente com o Cândido Rolim: Fernando Pessoa, do livro Mensagem, e Paul Valéry - não por acaso autores de filiação simbolista. O poema na pele de coisa-signo encarnado, em detrimento da tradição livresca que o apresenta como sublimação seja dos humores da emoção, seja dos labirintos da razão, ultrapassa essa dicotomia. Ou seja, todo poeta, em que pese a fase inicial de concepção da obra, quando são encarecidos aspectos mais intelectuais e especulativos, mantém, em geral, uma relação mais física ou corpórea com o material verbal através do qual sua criação se presentifica. Portanto, produto de uma dialética entre o febril e o fabril, quando o poema alcança um lugar (forma dinâmica) ou se materializa, ele inaugura esta sua condição de ser quase tangível de linguagem. Ferreira Gullar usa a imagem da tarefa poética como um “corpo a corpo com a linguagem”.
PASS - Você acredita que Pedra Habitada possa apresentar uma substância poética instável e fugidia que se contrabalança com o tom e ritmo dos versos? Em caso afirmativo, poderia explicar tal assertiva?
RA - Vamos ver se entendi sua pergunta. Do meu ponto de vista, a poesia do Cândido, pelo menos no livro em apreço, segue a tradição da “música sem-versista” (Décio Pigantari). Embora o poeta não abandone de todo as conquistas do versilibrismo, fica claro que não está mais sob o seu jugo. O verso-livre ainda tem muito a ver com o verso metrificado que pretende substituir. Por outro lado, à semelhança de muitos dos seus pares, Cândido Rolim põe em movimento um poema cujo ritmo (mais próximo a uma performance da enunciação vocal do que a uma forma impressa acabada) joga com a indeterminação dada pelos cortes (marcações) dos versos e pela sintaxe elusiva. É por isso que me refiro ao verso do Rolim como uma frase fraturada, como um enunciado que parece se situar a meio caminho do subjetivo ao objetivo.
PASS - Pedra Habitada apresentaria uma concepção de poesia como uma "substância resistente"? Como se caracterizaria essa substância resistente?
RA - Não entendo muito bem o que você quer dizer com "substância resistente". Prefiro falar sobre a poética do Cândido Rolim de maneira a reconhecer sua vocação para representar a poesia como um “ser de linguagem” ou como coisa-pensamento. Ambas as visões me parecem interessantes, pois nelas se reconhece tanto a dimensão material (o afazer) quanto a pulsão ideográfica (o pensamento que se converte em imagem) da poesia que estamos debatendo.
PASS - Você acredita que há em Pedra Habitada uma energia verbal transformadora, que resultaria da suma de evocações de imagens essencialistas?
RA - Não sei se usaria para as imagens constantes de Pedra Habitada o qualificativo “essencialistas”. Do mesmo modo, falar numa “energia verbal transformadora” a propósito do livro (se é que entendo sua afirmação), me parece que assim acabaremos reforçando/reificando - ao invés de problematizarmos ou de debatermos em profundidade -, a força da arte, e isso me parece preferível porque por meio dessa suspeição irônica nos tornamos mais aptos para compreender a arte e a poesia numa dimensão menos grandiloqüente ou menos esperançosa em relação ao seu poder de fogo.
PASS - Você acredita que o sujeito enunciador dos poemas em Pedra Habitada parece dividir o lugar desde o qual se fala, num claro imbricamento com o próprio ato de leitura?
RA - Talvez a este propósito lembraria uma afirmação de Jakobson que diz o seguinte: “a ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável da poesia, portanto, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos”. Acho que você acerta ao buscar as similaridades entra o “sujeito enunciador” dos poemas de Pedra Habitada e o leitor possível desse lance de linguagem. Por isso, no posfácio ao livro do Cândido, ao me referir à representação indecidível da linguagem em seus poemas, escrevi que ele tenta na fatura dos seus textos “mimetizar o périplo mesmo da leitura: interpretação cega, tateante...”. Para Cândido Rolim, cada poema inaugura e ao mesmo tempo exaure uma chance de linguagem: um verdadeiro e jubiloso acabar-começar textual.
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