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Claudio Cruz, poeta que soube esperar por tudo



Conheço Claudio Cruz há bem uns vinte e cinco anos, no mínimo. Suas personae e seus interesses estéticos vão da canção à prosa, passando pelo teatro, a crítica e o ensino de literatura, e chegando até a poesia. Deixei por último, de propósito, a menção ao gênero lírico, apenas para criar um “clima”, pois, ao contrário do que parece para muitos que conviveram e convivem com Claudio Cruz, a poesia talvez seja o aspecto menos inextrincável de sua sensibilidade. Não quero parecer dramático nem retórico, mas com a publicação de A ilha do tesouro e outros poemas — sua estréia em poesia —, essa pequena confusão começa a ser solvida. Secretamente, a dimensão do poeta em Claudio Cruz sustenta e dá coesão a todos os outros aspectos expressivos de que até agora se serviu para estabelecer o diálogo em perspectiva tanto com os leitores, quanto com os seus iguais.


Embora eu o tenha conhecido primeiro como diretor de teatro (em 1983 assisti à sua montagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett), a imagem seguinte, a do poeta, é a que se impôs em mim, talvez porque isso tenha coincidido com o início da nossa amizade. Confesso, entretanto, que a imagem se fortaleceu nem tanto por sua produção, inclusive porque o que a caracterizava era um traço comum à maioria dos poetas da nossa geração pós-moderna (década de 1980), a saber, éramos todos compenetrados diluidores dos modelos consagrados pelos mestres do modernismo. Mas eu sabia que Claudio era poeta pela sutil seriedade com que encarava a poesia, a sua e a alheia. É como se estivesse a espera do melhor, de quem quer que fosse, mas sem o mínimo lance de festejo descabido. Claudio cultivou estrategicamente a imagem de um poeta bissexto. O poeta restou, para o âmbito público, como uma sombra gaiata, como um vir-a-ser. Assim, enquanto o poeta municipal atirava pedras no representante estadual, o autor de A ilha do tesouro e outros poemas (Ed. Clarília, 2009), não tirava ouro do nariz, não; mas, antes, seguia produzindo sua “comida suculenta” (excerto do poema Hugh Selwyn Mauberley, 1920, de Ezra Pound). Por isso, para uns e outros, a impressão de que o prosador Claudio Cruz teria chegado na frente. Portanto, me atrevo a dizer que as inquietações tanto deste como as do analista erudito que complementam seu caráter, já estavam prefiguradas em poemas produzidos nos remotos anos da década de 1980. Tanto que a cidade, seja como arrabalde, seja como teatro baudelairiano ou, ainda, a tradição poética e a recepção contente da influência, temas da prosa e da ensaística de Claudio, estão representados em A ilha do tesouro e outros poemas.


O poema de abertura — que responde em parte pelo título do conjunto de poemas —, A ilha do tesouro, recorta arrabaldes em sinédoques da pequena grande cidade de Porto Alegre, mapa de biografemas. As imagens formam um itinerário, um movimento circular, cujo ponto de partida é o mesmo de chegada (in illo tempore), fazendo alusão ao itinerário do bonde anafórico que soa na tépida escuridão da memória arrastando-a até o mundo “arte-feito”, até o espaço sonoro da poesia. A voz lírica, um infante, vê e rememora em travelling cenas metonímicas de um passado familiar em meio às alterações da contida metrópole. Transculturação lírica da imagem baudelairiana que captura mudanças urbanas em todos os âmbitos, “Dans tous les hôpitaux et dans tous palais”, da cidade enquanto metáfora estética. A esse propósito, destaco um poema do conjunto:


As mortes


Avó, avô, primo, tio, tia, pai.

A morte de guarda-pó branco,

o infante pela mão, pelo hospital.


Em A ilha do tesouro e outros poemas, Claudio Cruz experimenta um comportamento de linguagem parecido com o que Carlos Drummond de Andrade se viu envolvido na fatura da sua obra Boitempo (1963-1979) onde o sentimento do mundo é afetado pela ambigüidade da memória, fusão do vivido e do imaginado. No entanto, as recordações do poeta porto-alegrense se mostram menos prosaicas do que as do itabirano, pela simples razão de que Claudio presta uma atenção quase que devota a um mérito inegável da poesia: ela diz mais (ou menos) e em menor número de palavras que a prosa, divisa que parece não ter interessado aos propósitos de Drummond, ao menos na economia do livro referido. A metáfora de um “palácio da memória” calha muito bem para Boitempo. Já a musa mnemônica de Claudio Cruz encarna em uma linguagem mais lacônica e lacunar ao desbastar o elegíaco que conforma a revisão de outros tempos.


Mas como o poeta de A ilha do tesouro e outros poemas é consciente da excelente tradição que o precede, seria uma indelicadeza se ele não deixasse transparecer traços de “poemas velhos” nos seus estudados e magros lances textuais. Com efeito, Claudio poderia muito bem epigrafar seu livro com esses versos do português Jorge de Sena: “Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito./ Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,/ quando fico triste por serem palavras já ditas/ estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos”. Evoco esse poema para confrontá-lo com um trecho do “Poema para cabrais” de Claudio Cruz, que diz assim sobre um piano visto em retrato:


...dependendo do ouvido

de quem vê a fotografia

coisas sutis acontecem

certa magia transparece:


coloridas notas se tocam,

se abraçam, propõem viagens,

como acontecia num poema

antigo, com as palavras.


Não obstante as imagens poderosas, carregadas de senhas cinematográficas e mitologias, que ainda hoje nos abastecem, os poemas velhos nos lembram, em todo momento, de que são feitos de versos para serem lidos em voz alta. E como soe acontecer em poemas antigos (Odisséia, Eneida, etc), a poesia de Claudio, em paralelo, também “depende do ouvido de quem vê” seus detalhes fonológicos, cuja expressividade é dissimulada por meio de uma recusa a todo maneirismo. Como exemplo, transcrevo na íntegra o poema “Noite”: “Navegar no ônibus/ quando em quando/ faróis.// E pensar que há/ palavras/ que não emergem/ jamais”. A redondilha menor do primeiro verso, insinuando tonalidades mais sombrias graças à presença do vocábulo ônibus, encerrado entre as duas vogais mais escuras e fechadas, /o/ e /u/, põe em movimento a fanopéia vívida de uma longa noite em trânsito que a reiteração dos sons anasalados do verso “quando em quando”, antecipando faróis efêmeros, não mitiga uma espécie de náusea (“Navegar no ônibus”). A sílaba tônica em “fa-róis” prenuncia o primeiro verso da segunda estrofe, também em redondilha menor. Já que este verso, em termos de timbres fônicos, é todo claro e aberto (“E pensar que há...”) em contraposição ao seu dublo, marcado por escuridades significantes. Sombra e luminosidade. Materialização formal dos intermitentes fachos de luz rasgando os restos de treva que escorrem pelo rosto do personagem no entressono. “E pensar que há/ palavras...”, a luminosidade crescente sugerida pela seqüência fônica de vogais abertas (/e/ e /a/) embutidas nos versos, resulta em anticlímax, pois a insistente claridade esbarra, de repente, na opacidade da negativa adverbial de “jamais”. Os sentidos afloram e se dissipam ante a mobilidade de um escrito possível e sempre suspenso. Ônibus e bonde, máquinas do tempo, se confundem: “Abrupto arranque de repente/ (...)/ Melodia metálica cantante,/ sagração da primavera para o infante,/ cada vez mais distante/ cada vez mais distante”.


Inteligentemente, Claudio fecha A ilha do tesouro e outros poemas com duas peças que sintetizam uma espécie de chave léxica para a leitura-fruição da obra. “Poesia” e “Liturgia poética” são os títulos, respectivamente, do penúltimo e do último poema. Eles se opõem e se complementam. “Poesia” respira o ar tísico da humildade emprestada à Manuel Bandeira; os versos estão mergulhados naquela felicidade crepuscular de quem soube “esperar por tudo” tendo a poesia como partner muda, mas nunca apartada. De outra parte, “Liturgia poética”, combina, em seu despojamento de achado intertextual, a boutade da estética pau-brasil de Oswald de Andrade, com o mínimo múltiplo comum da poesia concreta. Um pequeno tratado onde a tradição aparece em movimento, isto é, resultante do desejo (sincronia) que embaralha o fichário (diacronia) do acervo. Um poema se limita de um lado com a prece, e, de outro, com a confissão. E o outro, ironiza o cânone enquanto ladainha e beija-mão.


Ao contrário de parcela considerável da poesia atual cujo desempenho só vai até onde chega a tolerância do leitor, e, como resultado, suas obras traduzem um movimento inconcluso que parte de um “repetir para aprender” e não chega sequer a roçar as bordas de um “aprender para criar”, Claudio Cruz já está do outro lado dessa linha de fronteira. Aprendeu. Com “uma flor de humor entre os lábios”, enquanto a esperava (embora sabendo que ela, há muito, já chegara) aplicou-se a estudar a arte da poesia para poder criar seus próprios problemas e, lembrando Dante, entesourá-los em algum lugar da música de nossa memória.

Comentários

Hey Ronald, depois de toda esta conVersa, vou já encomendar o meu.

Bom ver a Poesia ser retratada assim.

Um beijo amigo.

Carmen Silvia Presotto
www.vidraguas.com.br
denise freitas disse…
muito bom o livro do claudio cruz
gosto especialmente do "poema para cabrais"

me lembra René Magritte "isto não é um cachimbo"

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