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o drible no racismo



O episódio acerca da discriminação racial de que foi vítima o jogador de futebol Grafite, que à época (2005) atuava pelo time do São Paulo, gerou um debate revelador a propósito de um sem-número de imposturas no tocante ao modo de abordagem do racismo brasileiro em âmbito futebolístico. Não é de agora que se percebe que a barbárie – ou uma irracionalidade circunscrita, e como que tolerada, dentro dos limites “da rodada” – se refugia nos apreciadores e nas coisas relacionadas ao futebol. De outra parte, não recuso de modo nenhum o futebol que, não só para mim, aliás, para muitos, é considerado uma forma de arte e, portanto, de modo análogo como o poeta Charles Baudelaire a entende, também o futebol tem os dois elementos constitutivos da modernidade artística: um que é contingente (pode ser jogado com mais ou menos cadência, pode ser mais ou menos defensivo, etc.) e outro que é eterno (são onze contra onze, habilidade com a bola e eficiência na ocupação dos espaços).


Sou torcedor convicto do meu time e dessa arte que eventualmente ele e outras equipes são capazes de nos oferecer por meio de algumas sinédoques, como, por exemplo: a plasticidade dos movimentos; contra-ataques precisos; gols de fora da área; goleiros pegadores de pênaltis; tabelinhas geniais só comparáveis a parcerias musicais também geniais; um gol de bicicleta; o zagueiro ou o volante que joga de cabeça erguida e se antecipa ao atacante, enfim, nomes são mais eloquentes: Pelé, Garrincha, Maradona, Ademir da Guia, Manga, Zidane e Messi.



Mas, ao mesmo tempo, presto atenção à fala dos envolvidos (torcedores, jogadores, técnicos, cartolas e a crônica esportiva) e sua rebaixada argumentação erística cuja meta é antes vencer do que convencer o oponente, não interessando por que meios, isto é, estando ou não ao lado da razão. Em função disso, não há como negar o preconceito entranhado no discurso que informa esse esporte e sua circunstância. Retorno, portanto, ao início deste texto com um resumo do fato acontecido com o jogador Grafite. O caso diz respeito ao episódio que envolveu o atacante brasileiro e o zagueiro argentino Leandro Desábato, então defendendo a equipe do Quilmes, durante partida válida pela primeira fase da Copa Libertadores do ano de 2005. O jogador brasileiro acusou o argentino de racismo, que recebeu voz de prisão ainda no gramado do Morumbi. Desábato ficou preso por dois dias em São Paulo acusado de injúria com agravante de racismo depois de ter insultado Grafite, em campo, chamando-o de “negro de merda”.


O fato desencadeou uma onda de mal-estar, e nessas ocasiões há um comentário recorrente que aparece aqui e acolá defendendo o seguinte: “Sinceramente, não sei o que este tipo de discussão de portas abertas pode trazer de benefício”. Só um pouco! Quero entender essa angústia: o racismo seria então uma “questão de foro íntimo”? Ouvi algo equivalente a isso da boca de um renomado comentarista esportivo do rádio e da televisão do Rio Grande do Sul, não é por outro motivo que seus pares de jornada futebolística o chamam de Professor. Pois esse Professor, a propósito do caso Grafite, deu mostras de sua sabedoria, prevaricando com uma argumentação que dizia mais ou menos assim: a intimidade indecorosa das quatro linhas, o espaço mítico do campo deve ser preservado, pois o que se passa no interior das marcas de cal não deve sair dali. Nessa peleja de constantes contatos físicos, onde as emoções estão à flor da pele, onde muitas injúrias, palavrões e impropérios são lançados mutuamente e em que, não por outra razão, nos últimos tempos tem-se cobrado, inclusive, o fair play dos atletas; enfim, em que, por todas essas tensões, as sequelas ríspidas advindas deveriam ser relevadas e mantidas tão só ali, já que depois dos noventa minutos tudo retorna ao seu leito normal, todos são adultos e profissionais e sabem que se trata apenas de mais uma partida. A paixão envolvida, ou melhor, mais do que isso, requerida nesse desporto, até seria uma atenuante dos eventuais “excessos de força” aplicados, seja numa entrada de sola, seja num epíteto ofensivo. Essa roupa suja não se lavaria em público.


No Brasil não se discute publicamente o racismo

O arrazoado do Professor não destoa da visão de mundo em que estamos imersos até o pescoço quando tal tema é trazido à tona. A recusa covarde ao debate público sobre fraturas sociais que, o mais das vezes, se mantêm arraigadas nas esferas do espaço privado, suporta a sensação de segurança de quem patrocina essa regressão permanente da indiferença ao preconceito – ou à sua naturalização –, tornando os envolvidos diretos aptos apenas para desempenhar as tarefas e as falas estupidificantes que a sociedade exige deles. Os boleiros hesitam entre a elegância do carrossel holandês e o círculo vicioso da várzea, onde é cada um por si e o preconceito racial chuta as suas canelas.


Sabe-se que na aurora do futebol brasileiro seus adeptos e praticantes eram todos brancos; coisa da alta sociedade. Com o passar do tempo, quando os negros começaram a praticá-lo acontecia um fenômeno curioso: durante os noventa minutos sacrossantos do jogo, dentro da intimidade das quatro linhas, as faltas só existiam dos negros sobre os brancos. Era o futebol inglês aclimatado ao jeitinho brasileiro, digamos assim. O drible-ginga nasce como resposta à cegueira do juiz com relação às faltas que os brancos infligiam aos negros. Podemos supor que o juiz, esse despachante menor da garantia do direito republicano à igualdade, fazia vista grossa a maior parte do tempo; favorecia os desfavorecidos de cintura dura. Portanto, os jogadores brancos tinham uma quota de faltas a infligir aos jogadores negros. Estes, para escapar, ou fugir das faltas, inventaram o drible, a finta, o jogo de corpo, o corta-luz, a pedalada. O modus faciendi da capoeira é transposto ao futebol. Assim, cada vez que alguém, agora, dá um drible no mané de plantão, reprisa-se a superioridade da sutileza sobre a barbárie. A cada vez que revemos Edson Arantes do Nascimento dando um drible memorável, mesmo que sua vítima-escada seja um “irmão de cor”, reinventa-se, por meio desse lance de desobediência civil, o trauma, a humilhação, a transgressão – porque tal coisa parece sercontra natura –, em suma, a infração do negro se impondo sobre o branco.


Por que contrabandear de dentro das quatro linhas para o ar respirável aqui de fora essa questão impertinente? No Brasil não se discute publicamente o racismo, não só porque a maioria ainda aceita o mito da democracia racial, mas porque levar às últimas consequências esse debate talvez faça com que o “pessoal tome gosto pela coisa”, vale dizer, que se aperceba de que ser abertamente racista talvez seja plausível. (O silêncio em torno do problema do suicídio obedece à mesma lógica supersticiosa: “falar do assunto à vista de todos só faz piorar as estatísticas a respeito”, dizem). Por isso reiteramos o lugar comum de que nossa situação de “racismo cordial” seria preferível à do histórico segregacionismo estadunidense; serve de desculpa para deixarmos as coisas do mesmo jeito: pelo menos não piora. É engraçado que o aparente estado de barbárie daquele país – relativamente a este quesito em que somos mais civilizados e, supostamente, tocamos o primeiro violino, afinal somos uma “nação morena” – tenha permitido que um negro se elegesse presidente. Enquanto isso, bulimos e lambemos nossas feridas, lendo de maneira fleumática – espécie de iluminismo de fachada, de branco cor de fiambre – a inquietação neurastênica do texto “O Presidente negro” de Monteiro Lobato, esse intelectual e mestre fundador da identidade brasileira, cuja blindagem começa a fazer água, e que dizia: “...será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro!”.


Para finalizar este artigo, adapto de Manuel Bandeira uma ideia que o poeta defende em crônica datada de julho de 1958 – em que, despretensiosamente, apela à arte da bola, ao ludopédio, em seu sentido tanto estético quanto ético –, qual seja, que diante da capitalização política da conquista brasileira da Copa do Mundo daquele ano, os nossos grandes representantes se preparavam para desfazer com as mãos (fast fingers) o que os campeões fizeram com os pés.



ANEXO

Fragmento de uma crônica sobre futebol, de Manuel Bandeira:

“(...) uma briga no jogo entre adversários sem educação pode acarretar movimentos de antipatia entre os países a que eles pertencem. Não é insensato?
O campeonato sul-americano recentemente disputado
[Bandeira se refere ao certame de 1959] em Buenos Aires ofereceu um exemplo desse perigo. Brigamos com os uruguaios, povo de que somos fraternalmente amigos, salvo em futebol, e foi com imensa apreensão que entramos em campo para disputar a final com os argentinos. Felizmente estes se portaram de maneira irrepreensível, o resultado foi o melhor que se poderia desejar – o empate na partida, embora tenhamos perdido o campeonato. Na verdade o perdemos quando empatamos com os peruanos.
É preciso que as entidades do esporte inglês, a imprensa, os torcedores, toda a gente, se capacitem de que esses prélios internacionais são antes de tudo grandes festas de aproximação, de confraternização. A honra nacional está em causa não na vitória ou na derrota, mas no
fair play.[08 de abril de 1959]

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