Poema escrito em versos
decassílabos brancos, isto é, não rimados, cuja acentuação
oscila entre heróica (as tônicas caem nas 6a
e 10a sílabas)
e sáfica (tônicas nas 4a,
8a e
10a
sílabas). Contudo, no interior dos versos se constata, além
de muitas correspondências fono-semânticas que mobilizam e
potencializam o entrecho textual, a ocorrência de assonâncias,
rimas toantes, tais como: membros/quedos, sentado/lago,
ramos/manso, escravo/raios, furtiva/notívagas,
etc. Em outro passo, o vislumbre de um virtual palíndromo misturado
a mais assonâncias e traços aliterantes em / t /, quando o
poeta sente o “graTo aroma” entre os “TorTos
ramos”. Nos dois primeiros quartetos, também encontramos a
interessante teia paronomástica “marmor/amor/mar”, que numa
investida hermenêutica sem pretensão de ser exaustiva, autorizada,
por sua vez, pela interpretação referencial do poema, se poderia
ler, por exemplo, assim: o amor pertinaz enfrenta o mar
iracundo – as resistências do entorno –, mas termina, num jogo
cambiante de anagramatização, deparando a mudez do mármore
estatuário, como óbice étnico-social. Mais abaixo, esta seqüência
será desenvolvida.
O poema “Junto à
estátua” (Trovas burlescas, 1859-1861) apresenta,
portanto, uma composição sonora mais orgânica, para cuja beleza
contribui, mesmo, a liberdade no uso franco de diversos tipos de
estrofes. Luís Gama lesa as regras da versificação conferindo ao
poema uma pulsão transgressora com relação aos modelos em que a
funcionalidade expressiva começa a afrouxar. A par disso, não se
pode perder de mira que o poeta é representante do “duro” em
contraste com o “suave” na arte da poesia. Ele se insere numa
cidade estilística que tem em perspectiva a retórica do escárnio e
do maldizer. Por conseguinte, objeções como as que partem,
inclusive, de alguns organizadores e comentadores de suas obras,
afirmando que Luís Gama “não prima pela beleza formal” e que
sua rima “às vezes é paupérrima”, caracterizam bem a expressão
espirituosa que faz broma da tentativa descabida daquele que pretende
colher “pêras ao olmo”. Uma visão apenas “sério-estética”
da literatura, ao cobrar o que, aparentemente, falta à poesia de
Luís Gama, não percebe o que ela contém.
Assim, embora Luís
Gama não se vexe de tomar emprestado de Camões uns clássicos
versos renascentistas para epigrafar sua pequena grande obra – e
incorpore, mesmo, algo da atmosfera e do estoque imagético com que o
poeta lusitano esboça uma cena bucólica –, não há um padrão
estrófico estabelecido de antemão ao qual se submeta, nem a
filiação restritiva do autor às exigências de uma ourivesaria do
verso. Por entre os vazios fragrantes da estrofe camoniana, Gama põe
em circulação um surdo gracejo. O poeta nos faz saltar do quarteto
para a sétima, desta para um grupo de tercetos e outro quarteto,
depois nos abandona numa estrofe de onze versos e, em seguida, nos
convida a enfrentar um sexteto, etc. As estrofes se acomodam ao
“clima”, aos sobressaltos da matéria narrada. O poema é
concluído com quatro “quadras ao gosto popular” em redondilha
menor, versos de cinco sílabas, mas, desta vez, com rimas
consoantes. As quadras (“...canções, ternas endeixas”), vazadas
numa fanopéia “pó de arroz”, preservam, no entanto, um tom
gostoso e melancólico de cantiga que alude à estética do “domínio
público”, onde a ingenuidade premeditada – ou, ainda,
kitschizada – se configura em post-scriptum mitigador da
“desilusão amorosa” a que é submetido o espírito desta voz de
inflexão romântico-parnasiana condutora do poema.
Resumindo um pouco, o
poema trata do pesadelo persecutório do eros inter-racial,
onde estão em causa, no julgamento e na censura determinados pela
sociedade, a hýbris do negro que inspeciona território que
lhe é vedado e o rebaixamento da presumida pureza do branco
envolvidos nessa variedade de contrato amoroso. Por outro lado, é
interessante notar que Luís Gama não condena nem absolve a
perplexidade da persona negra no instante em que percebe,
depois da estranha noite de prazer entre “aéreos sonhos”, que,
agora, tem em seus braços apenas o “grosseiro mármore” de uma
estátua gelada. Quando muito, o poeta deixa em aberto um quase-riso
com relação ao auto-engano, pois ele talvez se veja implicado no
logro, a um só tempo, ingênuo e complexo que materializa no poema.
À parte, resta o
“estado de coisas” pré-abolicionista, pois: “longe do mundo,
das escravas turbas”, o “túmido Tritão” acolhe em seus
“lábios negros” a “virgem de nevado colo,/ de garços olhos,
de cabelos de ouro”, e em seu delírio lírico voa “com ela às
regiões etéreas”. O mármore final, a estátua em que se
transforma, ou se revela, o obscuro objeto do desejo do poeta-Tritão,
rivaliza – dentro de uma perspectiva sincrônica – com a metáfora
da parede tremenda de preconceitos tematizada por Cruz e Sousa no
poema em prosa “Emparedado” (Evocações, 1898). A
dialética da interdição e da auto-interdição no corte indeciso
entre o privado e o público “à sombra/ da infernal ventura” de
seu tempo.
Junto à estátua – Luís Gama
(NO JARDIM BOTÂNICO DA
CIDADE DE S. PAULO)
Já a saudosa Aurora destoucava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E as boninas nos campos esmaltados
De
cristalino orvalho borrifava.
CAMÕES
– Soneto
Em
plácida manhã serena e pura,
Sentado
à borda de espaçoso lago;
O
corpo recostado em frio marmor,
Tórridos
membros sobre a terra quedos.
Qual
túmido Tritão de amor vencido,
Transpondo
as serras, iracundos mares,
D’Aurora
o berço perscrutando ousado,
Dolorosos
suspiros exalava
Meu
frágil peito da natura escravo.
Já
nas fúlgidas portas do Oriente,
Trajando
púrpura majestoso assoma
Luzeiro
ardente, que expandindo os raios,
Deslumbra
os olhos, e a razão sucumbe,
E,
com furtiva luz, pálidas fogem
Notívagas
esferas cintilantes.
As
brandas auras perfumadas vinham
De
grato aroma que invejara Meca
Nos
tortos ramos assoprar de manso.
Em
nuvens brancas lá do céu caía
Pranto
saudoso que derrama a Aurora,
Que
a terra orvalha, que floreia os prados.
Longe
do mundo, das escravas turbas,
Que
o ouro compra de avarentos Cresos,
A
minh’alma aos delírios se entregava,
À
sombra de ilusões – de aéreos sonhos.
Formosa
virgem de nevado colo,
De
garços olhos, de cabelos louros;
Sanguíneos
lábios, elegante porte,
Mimoso
rosto de Ericina bela,
Curvando
o seio de alabastro fino,
Mimosa
imprime nos meus lábios negros
Gostoso
beijo de volúpia ardente! –
Vencido
de prazer, nadando em gozos,
Já
temeroso pé movendo incerto,
Vôo
com ela às regiões etéreas
Nas
tênues asas de ternura infinda.
.........................................................................
Rasgando
o véu das ilusões mentidas,
Que
est’alma frágil seduzir puderam,
Imóvel
terra, cambiantes flores,
Viram
meus olhos no romper da Aurora;
E
dentre os braços, que cerrados tinha,
Gelada estátua de grosseiro mármore!...
Gelada estátua de grosseiro mármore!...
Cândidas
boninas
E
púrpuras rosas,
Violetas
roxas
Do
luar saudosas;
Verdejantes
murtas,
Redolentes
cravos,
Lindas
papoulas
Da
donzela escravos,
Ao
soprar da brisa
Em
balanço undoso,
O
mortal encantam
Num
sonhar gostoso.
Mas
fugindo as nuvens
–
Que
a ilusão fulgura,
Só
vagueia à sombra
Da
infernal ventura.
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