Prólogo travestido de poema;
parapoema; operação duchampiana onde o discurso poético se interessa por sua própria
desaparição e toca, portanto, a linha de fronteira da antipoesia; virulento
tolicionário aos interessados em conquistar uma vida segura; enfim, o texto que
situa o leitor na antessala do conjunto de poemas Use o assento para flutuar de Leo Gonçalves, parece exigir desse
leitor que ele “pare à porta e cisme”. Sem recusar a noção de que um poema
começa por onde termina, Leo Gonçalves – sabendo que diante da aparente
impenetrabilidade do poema o fruidor anseia para que se abram suas portas de
modo que ele seja introduzido nesse universo desconhecido – concebe a leitura
como suspeição irônica diante dessas portas que estão sempre maliciosamente abertas.
O texto de abertura justapõe uma
série de sentenças e enunciados que se constituem numa espécie de manual de
instruções de corte paródico cuja observância facultará uma vida de prudência
ao cidadão resignado ou ao “homem sem qualidades” do nosso tempo. Cada
conselho-advertência desse manual inicia monotonamente com a anáfora “para sua
segurança” (em negrito). Os clichês e os lugares-comuns que se seguem reforçam
uma crítica mais ao autoengano e à autointerdição do que ao controle externo
imposto pela sociedade ao sujeito. Exemplos de tal ambiguidade: “para sua segurança nunca dê uma passo
em falso”; “para sua segurança tudo
que é difícil cansa”; “para sua
segurança mande matar o autor”. “para
sua segurança mulheres e crianças primeiro”.
Em Use o assento para flutuar Leo Gonçalves se revela um poeta cujo
alento versificatório traz a marca whitmaniana-poundiana
dessa discursividade extravagante, desse lance textual que desborda das suas
margens toleráveis, fazendo do corpo sonoro uma algaravia de sereias
ventríloquas. Ao mesmo tempo, os transes rítmicos vêm de aruanda (do ori), já a
imagética deita raízes no alto modernismo e em sua antilira logopaica. No poema
mais longo “WTC Babel S. A.” esse convulsivo sincretismo poético se apresenta
em toda sua radicalidade infernal. Uma medida de pop; fotogramas de um epos babélico;
pornografemas e drogadição estética; sicários políticos postos a nu.
Por
fim, um detalhe, uma pequena zona de escape para a prosa se dá a ver em Use o assento para flutuar. Leo
Gonçalves experimenta as formas breves na narrativa “A decisão”, esboço de fábula,
objeto verbal do absurdo. Kafka o observa do fundo da città dolente. Leo, leitor de Dante, mergulha no reino ínfero das
linguagens e constrói seu edifício para o leitor ninguém-ulisseida e, a partir do jogo entre o fortuito e o forçoso, leva
a efeito o movimento triádico e reiterativo. Pois, de acordo com os preceitos
da cifra 3, se alguma coisa acontece apenas uma vez estamos frente ao acaso; se
acontece pela segunda vez, pode ser que indique uma coincidência feliz ou não.
Por outro lado, se o evento ocorre uma terceira vez trata-se já de uma
confirmação, um signo. Use o
assento para flutuar confirma Leo Gonçalves como um poeta atento ao
risco e à premeditação, à deriva semântica e à composição intransigente.
Para a sua segurança, prezado
leitor, antes de abrir o livro, é essencial deliberar se você vai limpar pés na
entrada ou na saída.
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