Naiara Rodrigues Silveira, filha de Oliveira Silveira
Analisada e fruída em sua
complexa totalidade, talvez se consiga demonstrar através da presente reunião,
que Oliveira Silveira além de estar atento às questões históricas e sociais dos
afro-brasileiros, também respondeu crítica e criativamente ao seu tempo-espaço
porque não descurou quer das questões relativas à tradição poética (diacronia),
quer das relativas à função poética (sincronia), ou antes, porque as entendeu
sempre como valores vivos e em movimento, enfim, como algo que ele conquistou
tendo em vista a formulação da sua linguagem em situação de relação com o
ambiente literário que lhe tocou viver. Outro importante poeta brasileiro que
às vezes é valorizado por esse viés regional, embora renovador e renovado, mas
sem que sua poesia se defina integralmente por tal traço, é João Cabral de Melo
Neto. Muitos dos seus livros, inegavelmente, andam em linha vizinha ao
antropoético do Nordeste, mas jamais esbarram num tradicionalismo tout court, fechado em suas fronteiras. Não obstante o canavial, os agrestes e
a faca pernambucana, João Cabral é um poeta do “estar-no-mundo-da-linguagem”;
um engenheiro cujo discurso poético
se bifurca em “duas águas”: aqui ele se aproxima da realidade mais áspera, ali
o poema se presta a um gesto matemático infenso ao adiposo da melodia. Acreditamos
que o mesmo feeling informa a
consciência poética de Oliveira Silveira. E, dentro de certos limites, a aproximação
não é descabida.
No que concerne às
formas através das quais esse verismo regional é incorporado ao exercício
poético do autor, ficamos propensos a acreditar muito facilmente que a sua
descrição ou a sua representação dá conta dessa realidade. Isto equivale a
certa tolerância com que tratamos a coisa desde o ponto de vista estético do
artesanato, ou seja, quando tendemos a simpatizar, por exemplo, com os pintores
que retratam quadros de costumes ou de gênero: a ilustração da sentimentalidade
através de uma feira tropical ou de um grupo de peões pampeanos na lida.
Acreditamos, dessa maneira, criadores e apreciadores, que tal discurso pode dar
conta da realidade de fundo, do contexto que molda o homem. Mas isto é um
equívoco, porque esse suposto pertencimento regional “muito bem pintado” é
outra coisa que não essa aparência. Ora, a poesia até os nossos dias já se
consagrou, e pode ser que até demasiadamente, como a única arte que consegue
realmente ir além das aparências. Parece ser esta uma das suas vocações. E
porque ela não abarca apenas o real, nem lhe deve qualquer tipo de fidelidade,
é que se presta, à maravilha, também como uma investigação do imaginário, das
profundezas, do não-dito, das proibições, e isso tudo operando via linguagem,
ou seja, por meio de abstrações sígnicas.
A
propósito disso, Fernando
Pessoa chegou a uma ideia que cabe mencionar aqui como subsídio ao debate:
“Todo o material da arte repousa sobre uma abstração...”. O poeta argumenta:
“...a escultura desdenha a cor e o movimento; a pintura desdenha a
tridimensionalidade; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstração
suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior, porque o
som - acessório da palavra - não tem valor senão associado
(...). A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstração da realidade, tenta
reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstração exigida pelo seu
material, está a proporção em que é preciso idealizar. E a arte em que mais é
preciso idealizar é a maior das artes”. Em outras palavras, os
limites materiais e estruturais condicionam o modo de representação (a
linguagem) da arte. Consideramos o suporte em sua condição de balizamento expressional,
uma espécie de limite disciplinador, mas que seja regular e flexível, enfim,
plástico como o pensamento.
O mundo figurado pelas artes é um mundo parcial,
imperfeito, isto é, retomando o fio do pensamento proposto pelo poeta lusitano
– mas pelo avesso –, é um mundo idealizado, fora das margens do senso comum. A
África de Oliveira Silveira, por exemplo, é imperfeita e idealizada; do mesmo
modo, Palmares ou o seu “negro gaúcho mateando” que vem à tona da linguagem
numa mise-en-scène à beira do
estatuário. Quando lemos um poeta de verdade, e é o caso de Oliveira Silveira,
tudo acaba (bem!) num livro. Não se admite com facilidade, mas está implicada
na tarefa poética uma opção
pela arte em detrimento da vida. A vida não é suficiente. No livro Banzo
saudade negra (1969), o poeta se refere a essa África ausente de todos os
mapas (a flor ausente de todos os buquês da adivinha mallarmaica), qual seja, a
palavra-metáfora áfrica, poderosa em
sua irrealidade de coisa-nome, diz o poema: “Eu te quero em minha casa, em meus
braços,/ minha África
particular”; portátil objeto verbal (um ex-voto em sinédoque icônica) através
do qual o rio Congo, por meio de uma transfiguração proteica, nos é apresentado
com “olhos líquidos”, com um “sorriso branco” graças ao “marfim dos elefantes”
oniricamente misturado às suas águas. Mergulhado nesse compósito de alegria e banzo facultado pelo
poema, Oliveira se permite substituir a representação do mundo pela invenção de
outro.
Mas a recorrência à tópica
afro-gaúcha nem sempre se manifesta por uma suspeição poética tão ostensiva;
eventualmente esse mundo (África-mãe, raízes telúricas e negras) é abordado com
apetite documental. Fruímos uma grande variedade de poemas rentes ao autor empírico, esse sujeito que nasceu
em Touro Passo (RS) e que se vê filiado à vertente banta (área
angola-congo-zairense). No entanto, na essência da sua linguagem,
Oliveira Silveira vive o dilema signo
versus coisa. Sabe radicalmente que,
por exemplo, a palavra “negro” não
indica o negro que vive a cada dia “um dia de negro” no contraditório tecido
social brasileiro. Ainda assim, ele não aceita esse limite do material e tenta
por todos os meios (fracasso exitoso: o poema que surte) fazer, ainda que de
modo efêmero, a coisa coincidir com o
signo.
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