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O que deve ser dito, rapace



Dizer que Rapace de André Capilé é um pequeno e intratável conjunto de poemas onde uma antitradição aparece em movimento e em fragmentos que jamais se unirão, isto é, dizer que esta experiência de linguagem é resultante do desejo (sincronia) que embaralha o fichário (diacronia) do acervo. Dizer que Rapace é exusíaca expropriação do legado.

Dizer que, para o nosso tempo, Rapace pode ser a transluciferação do Losango Cáqui do mulato controverso Mário de Andrade. Quase a mesma gana de levar à derrisão o sonho do poema classudo. Quase a língua de todos os instantes dando um drible – o corpo para um lado, a bola para o outro – na antiestocástica do poema.

Dizer que André Capilé projeta os dados compositivos do poema além do círculo da metaforização ornamental; dizer, um pouco mais, que o poeta nessa “demorada hesitação entre som e sentido”, nesse redemoinho de morfemas, transfere ao poema toda uma anamorfose de meditados maldizeres congeniais ao “fine excess da poesia”.

Dizer que acompanho já há algum tempo e com grande interesse o percurso de André Capilé; dizer que isso começou em Juiz de Fora quando o ouvi, à época mais rapper que rapace, dizendo ou falando-farfalhando poemas de um jeito em que a estratégia da contenção dava a medida precisa ao transe verbal-musical exigido pela cena.

Dizer, ainda, que de tempos em tempos, quando conectados (Porto Alegre-Rio de Janeiro), trocamos altas palavras e ideias. E digo que gosto disso. 



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