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Cruz e Sousa: make it new





Ronald Augusto[*]

 Falsos Problemas


“Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! Porque és a escalpelante ironia da formosura, a Sombra da aurora da carne, o luto da matéria doirada ao Sol...” Eis aí, talvez, o indispensável Cruz e Sousa expondo - à sua maneira ou a quem tiver olhos para enxergar - o âmago daquilo que alguns estudiosos de sua obra consideram a “nota brasileira” do seu simbolismo, a saber, a condição de negro. Este recorte metonímico do poema em prosa “Psicologia do Feio”, que integra o livro Missal (1893), dá uma pequena amostra de quão abrangente é o estrato semântico a movimentar os dilemas e estilemas crítico-criativos de Cruz e Sousa. O Feio representa, a um só tempo, vetor ético e estético. O poeta opera com uma variante do motivo do artista maldito que vai se desdobrar no demiurgo algo monstruoso - porque dotado de “energias superiores e poderes excepcionais” que, no desmedido de sua experiência (húbris), transformam-se em verdadeiras ofensas contra o senso comum -, ou ainda, no visionário inconveniente, cujas revelações, cedo ou tarde, desestabilizam a ordem sócio-cultural.
A “tópica do artista desintegrado” (Ivan Junqueira), funciona, a bem da verdade, como um dado programático do simbolismo que, de resto, neste particular só fez atualizar ou incorporar elementos do romantismo ao seu repertório expressivo. Assim, a tópica do artista maldito - ser fora do lugar, poeta, como escreve Baudelaire, exilado “sur le sol au milieu des huées...”, cujas “ailes de geánt l’empêchent de marcher”-, como que se apodera do gesto criativo de Cruz e Sousa. Sua experiência biográfica intransferível repercute, ecoa narcisicamente no escuro espeleológico dos biografemas de sua linguagem poética.1 Cruz e Sousa, tocado pela mauvaise conscience, percebe, então, que de sua poesia pode surtir um sentido menos puro e menos intransitivo às palavras não raro diáfanas dessa irmandade descorada da via simbolista. Com efeito, Cruz e Sousa procede a uma crítica sibilina com respeito a esta retórica de que é um dos maiores representantes. Numa espécie de quimismo exasperante, o ideal simbolista do “criador maldito” recua, retroage até o ponto-nó de um conflito individual, privado: o poeta negro é, ele mesmo, “o maldito entre os malditos”, o poeta dos poetas do simbolismo. Sob este prisma, sua linguagem poética se abre, portanto, para um espaço algo divergente onde se pode vislumbrar uma antecipatória operação de transculturação. Isto é, para usar um termo muito em voga, o poeta propõe a diferença como valor sedutor e transviante. E sob certos aspectos, como corolário, sua poesia coloca sob suspeição o cânone a que ela aparentemente adere. Por este motivo, pode-se também perceber uma tonalidade metalingüística a atravessar de uma ponta a outra toda a sua poesia e prosa. Poemas como “Emparedado”, “Vida Obscura”, “Rir”, “Cristo de Bronze” e tantos outros, dão mais ou menos conta, a meu ver, dessa metalinguagem inexplícita, subjacente ao discurso poético de Cruz e Sousa.
 Dentro desta linha de argumentação, que entende cada poema (às vezes mesmo à revelia do desejo do seu autor) como um lance de linguagem implicado num debate de formas e de idéias que diz respeito a ele e seus pares, que exige a interferência deles e a sua réplica futura, não me parece fora de propósito reivindicar para a linguagem do poeta negro o estatuto de poesia-onça. Para tanto, sirvo-me da iluminação do poeta-crítico Décio Pignatari, segundo a qual a poesia-onça é aquela que, à semelhança do felino-símbolo, carrega aplicada à própria pele a marca de suas pegadas, um diagrama de rastros e de percursos interpretativos possíveis. Isto é, a poesia-onça é engendrada a partir de uma aguda consciência sobre a função poética da linguagem. Uma key lexical resta embutida em seu tecido verbivocovisual, na fatura - ou na fratura, Edimilson de Almeida Pereira dixit - dos seus signos; encapsulada feito um código genético. A poesia-onça instaura um tipo de poema cujas leituras possíveis e desejáveis devem ser deduzidas de sua própria materialidade enquanto objeto sígnico em situação de relação sincrônica com o legado da tradição. O dicionário da poesia-onça é intrínseco a ela. Não é dicionário normativo, mas anômalo, uma formulação particular proposta pelo poeta a partir da linguagem da poesia, entendida aqui como uma espécie de “idioma materno”.
A obra de Cruz e Sousa não vive, portanto, a expensas do simbolismo “eminentemente francês”, embora lhe deva algo de sua força. Seu simbolismo, digamos assim, heterodoxo, tem um quê de enviesado. Sua poesia está para o simbolismo enquanto estilo de época, assim como o “luto” está para a “matéria doirada ao Sol”. Um contrapeso irônico, uma crítica mefistofélica a par de uma náusea derivada diretamente da saturação daquela norma expressiva de extração eurocêntrica.
 Esta saturação que se traduz em agudeza formal, em retorcimento prosódico e, até mesmo, numa certa fanopéia altissonante, migra também para o poema em prosa “Emparedado” de Evocações, 1898. Embora seja uma referência quase que obrigatória, “Emparedado”, não chega a ser um poema capaz de estabelecer uma ruptura de formas relativamente ao que Cruz e Sousa produziu antes e depois. Observando com algum distanciamento, o poema paradigmático de Evocações não se comporta como um divisor-de-águas dentro da linguagem poética de Cruz e Sousa, assim como Un Coup de Dés, por exemplo, o é para a totalidade da obra de Mallarmé. No entanto, “Emparedado” representa de acordo com um determinado ponto de vista, a presentificação, via linguagem, do topos da “vida obscura”, da interdição do sujeito não-branco no interior de um perverso ordenamento social que erige-se sobre uma história de intolerância étnica. E, aí, pode-se reconhecer alguma novidade nele.
  O emparedado indica um ser multifacetado cuja identidade edênica parece perdida para sempre. Ele assume a forma do Feio, a agressividade do assinalado, o incômodo do maltrapilho, o satanismo do gênio exilado. Deste modo, o topos da existência relegada à sombra, perpassa a obra de Cruz e Sousa em toda a sua extensão, aflorando aqui e ali com maior ou menor visibilidade. Mas, no “Emparedado” o dilema, a um só tempo, se concentra e se expande de maneira tão inusitada, que sua configuração última só poderia mesmo resultar tão dramática quanto complexa. “Emparedado” vem angariando uma variada recepção. Multiplicam-se defensores a adversários.
  De modo geral, as abordagens críticas reservam grande atenção - para o bem ou para o mal - ao espinhoso viés da identidade étnica. As análises investigam a emergência de um eu negro. Mas, esse eu, conforme o foco interpretativo - mais ou menos sociológico nuns, mais ou menos psicanalítico noutros - às vezes será representado-denunciado como “complexado”, “dividido e conflitado”, e em outras vezes como o de “um negro que assume a sua condição de negro”. O acadêmico Domício Proença Filho, por exemplo, no ensaio “A Trajetória do Negro na Literatura Brasileira”, incluído na Revista do Patrimônio Histórico, no 25 (1997), vislumbra no “Emparedado” o que julga ser uma verdadeira “confissão” que “não deixa margem a dúvidas” no concernente a uma “visão negativa” que o poeta supostamente nutriria a respeito de si mesmo; uma insatisfação com o próprio temperamento que, segundo Proença Filho, “entortava muito para o lado da África”. De outra parte, Oswaldo de Camargo em O Negro Escrito (1987), atribui ao poema em prosa do poeta catarinense qualidades precursoras. Para Oswaldo, “Emparedado” abre caminho para um “grande número de escritores negros à busca de sua melhor expressão”. Finalmente, Zilá Berned no seu livro Poesia Negra Brasileira (1992), argumenta que Cruz e Sousa desvenda o tema da “raça de África, criticando a visão que a considera bárbara”. Ainda de acordo com a ensaísta e pesquisadora, o poeta “questiona o conceito de barbárie, devolvendo-o aos brancos a quem considera como ‘mais bárbaros’”.
Não obstante essas visadas sobre o texto literário representarem o reconhecimento da legitimidade de uma série de questões suscitadas pelo espírito da contemporaneidade, cujo registro multicultural se associa a um relativismo hipoteticamente progressista, não resta dúvida de que, sob tal escrutínio, as linguagens analógicas tendem a ser reduzidas, por assim dizer, a um sistema autista que mais se presta à omissão alienada ou a reprodução dos discursos hegemônicos. Isto é, a palavra considerada como sobra e/ou sombra da ação. Despojo dos conflitos político-sociais.
No entanto, mesmo concordando com a eventual pertinência dessas pulsões ideológicas envolvidas na abordagem do texto criativo, não se pode perder de vista que isto ainda é uma parcela do problema ou um dos muitos meios de acesso ao indeterminado do discurso poético-literário. E a arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva que se limita complementarmente com uma scriptio plena. Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Neste breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora vencido pela fome os cadáveres dos próprios filhos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino comeu ou não a carne dos seus filhos em Fevereiro de 1289?, Borges responde mais ou menos nestes termos: Dante não quer que o leitor pense que Ugolino praticou canibalismo, mas que disso suspeite. Isto é, a culpa presumida de Ugolino - preso no Inferno de Dante e não no da História - encontra-se num ponto indecidível de nossa imaginação: “Basta que a julguemos possível”, observa Luigi Pietrobono. Consideremos, agora, alguns tercetos do episódio de Ugolino:

A boca levantou do vil repasto
aquela alma, limpando-a no cabelo
do crânio que ela havia por trás já gasto.

E começou: ‘Medonho pesadelo
queres que evoque, e o coração espavente,
antes que o diga, só de concebê-lo’ ”.

                                                  (trad. Italo Eugenio Mauro)

Dante instiga ou ludibria a imaginação do leitor, apresentando logo no primeiro terceto a sombra de Ugolino devorando o crânio do seu suposto traidor, o arcebisbo Ruggieri. A imagem pode induzir à leitura de que Ugolino talvez tenha devorado os corpos de seus filhos e netos, embora não a suporte em definitivo. É uma espécie de finta, de recurso dramático, prepara, tensiona, e até mesmo, manipula a emotividade do leitor. É preciso ter estômago ou ser um monstro para comer esse “fiero pasto”.
No terceto seguinte, o fragmento “Medonho pesadelo queres que evoque...” é a tradução para “Tu vuo’ch’io rinovelli disperato dolor che’l cor...” (o grifo é meu). Ugolino se desespera ao re-contar, ao renovar, isto é, ao trazer à tona novamente a dor que apavora seu coração. Contar, evocar, renovar o acontecido por meio da memória, apontam para os sentidos originários de novela, isto é, narrativa, conto, etc. A audiência quer que Ugolino rinovelli sua dor para que ela (a dor) se converta em símbolo.

Quando a luz inda escassa se apresenta
      no doloroso cárcer, meu semblante
      nos quatro rostos seus se apresenta.
Mordi-me as mãos de angústia delirante.
      Eles, cuidando ser da fome o efeito,
      de súbito e com gesto suplicante,
disseram: ‘menos mal nos será feito
      nutrindo-te de nós, pai: nos vestiste
      desta carne: ora sirva em teu proveito’ ”.

                                                  (trad. J. P. Xavier Pinheiro)

O tradutor, nessa passagem, atenua o que em Dante soa mais áspero e menos alusivo (podemos supor que o tradutor levou em consideração para a sua solução as questões de ordem métrica). Senão, vejamos: Ugolino morde as próprias mãos, ferido pela angústia de ver seus netos e filhos definhando. Por sua vez, eles interpretam sua atitude cuidando ser efeito da fome. No original, eles concluem que seu avô e pai procede assim per voglia di manicar. Por vontade de comer. O verbo manicar é cognato de manducare, mangiare.
No entanto, quando Dante atinge o momento extremo do episódio de Ugolino, e sempre tirando proveito dessa dialética, desse jogo de avanços e negaceios, o poeta florentino propõe um verdadeiro “verso aberto” (opera aperta) onde o desfecho resta em suspenso como um acorde dissonante. Dante recua daquele momentâneo “realismo” algo cruel, e convida o leitor a se equilibrar nesse fio hesitante que diz respeito ao julgamento de Ugolino: Poscia, piú che’l dolor, poté’l digiuno. O poeta deixa de lado a scriptio plena, mais estável, mais apta a pôr as coisas em seus devidos lugares. O verso da Commedia não condena nem absolve Ugolino.
Voltemos mais uma vez a argumentação de Jorge Luis Borges, “No tempo real, na história, sempre que um homem depara com diversas alternativas opta por uma, eliminando e perdendo as outras; não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha ao da esperança e ao do esquecimento. Neste tempo, Hamlet é prudente e é louco”. Neste espaço-tempo textual, sedutoramente equívoco, Cruz e Sousa é o negro-branco sublimando o “protesto racial em revolta estética” (Roger Bastide) e ao mesmo tempo é o homem situado, a revelia dele mesmo, como um escritor negro strictu sensu, precursor da negritude nas Américas.
Da minha parte, ajuntaria a tudo isso o seguinte: “Emparedado” labora com curtos-circuitos semânticos, retorcidas descargas elétricas permeando ensaio logopaico - o aproveitamento tão enviesado quanto impertinente do tolicionário das idéias-feitas de seu tempo darwinista -, que incorpora e adensa o ato-falho e os eufemismos perversos que edulcoram manifestações de preconceito; e investe, ainda, no monólogo interior de persona proteiforme, máscara trespassada por uma multidão de vozes afiadas, tal como a água é atravessada pela luz permanecendo unida. “Emparedado” se configura como obra de um fingidor. Cruz e Sousa diz/mente-se pelo avesso certo; fingindo o que sente, desfruta-se enquanto regurgita-se a si mesmo politicamente incorreto. O poema se transforma numa espécie de terreno minado ao leitor que almeja apossar-se de “um” sentido: “Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígene alecremente flutuavam através dos estilos”.

 

Novas Formulações


Tortura Eterna

Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura...
Ó luta, ó luta secular, insana!

Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.

Ó sons intraduzíveis. Formas. Cores!...
Ah! Que eu não possa eternizar as dores
Nos Bronzes e nos mármores eternos!

Neste soneto que figura em Broquéis, 1893, Cruz e Sousa mais uma vez se volta sobre o tema da interdição, do emparedamento. Desta vez, porém, a clausura é investigada a partir de outra perspectiva: Cruz e Sousa tematiza os limites do discurso poético, o divórcio entre as palavras e os objetos que elas designam, a quase impossibilidade de precisar o impreciso. A nova cor da dor rememorada na tensa tranqüilidade do fazer poético, jamais será a dor experimentada à flor da existência precária. Os insubsistentes materiais da vida se transmutam em contato com a mobilidade das formas da poesia. O efêmero constitutivo desse exercício converte-o em “vã tortura”.
O mote do poeta ensimesmado, considerando as possibilidades expressivas do seu meio, também vai informar, mais tarde, o Carlos Drummond de Andrade do livro José (1942) no qual pode-se ler o poema “O Lutador”, cujos primeiros versos dizem: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã...” Com isso quero propor o seguinte, podemos fazer com que Cruz e Sousa participe sincronicamente de um sentimento que define, grosso modo, um pouco da nossa condição contemporânea, refiro-me ao estado de vazio - amargura ou aborrecimento - que parece fundamentar essa crescente opção pela intransitividade dos discursos. Quando Cruz e Sousa representa a poesia nos termos de uma “Força inútil”, minha tresleitura o faz descrever, de um só golpe, tanto a poesia de agora-agora, quanto o tom de nossa pretensão a uma pós-modernidade totalizadora e sem margens.
 Mas a consciência perfurante acerca dos limites de determinada linguagem, traz em seu bojo o nutrimento necessário para a superação desses mesmos limites, que são, ao fim e ao cabo, sintomas de uma crise. Cruz e Sousa sempre viveu plenamente a crise de como transmitir ou agenciar suas iluminações de poeta que invoca um outro mundo a partir do mundo da linguagem, seus “sons intraduzíveis, Formas. Cores!...”, tanto que, a certa altura de sua vida - que parece não ter sido, mas que foi e continua sendo, sim, porque se transformou em signo -, chega a confessar: “E quanto a mim, se me fosse dado organizar, criar uma nova forma para esta transmissão, certo que o teria feito... Nem prosa, nem verso! Outra manifestação, se possível fosse... Outro drama, outra Magia, outro Movimento” (apud Roger Bastide).
Assim, embora Cruz e Sousa não nos tenha legado “uma nova forma”, uma obra revolucionária no sentido em que as vanguardas históricas emprestavam a este termo, muitas das suas inquietações, muitos dos seus impasses e biografemas, revêm agora reinventados nas experimentações de linguagem de alguns escritores negros contemporâneos. Portanto, a seção derradeira deste estudo lacunar, devotado ao Cruz e Sousa, aqui situado, provisoriamente, como um dos pais fundadores de uma vertente negra na literatura brasileira, se organiza em torno da divisa poundiana make it new, que diz respeito ao renovar, à recriação da tradição, enfim, uma revisão de dados e formas com vistas a propor para o presente o passado novo de novo. Sem pretender emitir a última palavra no tocante a este tema, meu intuito será o de tentar mostrar, a partir da apresentação comentada de alguns poemas, como se vem processando, por assim dizer, a transmigração de certos estilemas do poeta simbolista para o centro ou para as margens das preocupações crítico-criativas desses escritores.
              De modo geral, a espacialidade gráfica, que indica uma sintaxe não-gramatical e o traço visual se projetando sobre o fonológico, ou seja, o verbal deixando-se contaminar pelo icônico, orientam o esforço de composição dos poemas em questão. Já na camada dos atritos semânticos, semas como “muro”, “labirinto” e “ilha”, repropõem numa pauta extremamente sintética - pois se elege um mínimo de elementos com vistas a um máximo de significação -, a metáfora da clausura do ser negro emparedado pelo racismo ou, ainda, em si mesmo perdido. Numa primeira leitura, os poemas de Oliveira Silveira, Arnaldo Xavier e Cuti (Luiz Silva), navegam as mesmas águas. No entanto, sem que isso indique uma fronteira intransponível ou um compromisso assumido pelo resto de suas vidas com um determinado procedimento de linguagem, os dois primeiros - levando em conta o tom que ambos conferem aos seus textos - seguiriam, digamos, uma linha “sério-estética”, enquanto Luiz Silva faria as vezes do representante da família “coloquial-irônica”. As etiquetas, também referidas por Ivan Teixeira no artigo “Metafísica e Exílio”, incluído em Cult, no 8 (1998), são de Edmund Wilson que, por meio delas, classificou os simbolistas franceses em dois grandes grupos, entretanto sua validade não fica confinada a este contexto de origem, sua polivalência, a par da leveza e da síntese - obtidas por um efeito de justaposição - com que o grande crítico as cunhou, induziram-me a repô-las em circulação.
Note-se, então, no poema de Cuti (Luiz Silva) o muro que se ergue a partir de um lance paronomástico: semelhanças de significantes na base da recriação dos sentidos; o caligrama, como um todo, irrompe de uma mensagem fática, uma interjeição que indica irritação, impaciência: Ora! O poema põe em causa a moral anti-eros, a moral amarrada ao mau-humor. Cuti toca num tema extremamente caro a Friedrich Nietzsche. Escreve o filósofo não-alemão (undeutsch): “Um moralista não é o contrário de um puritano? ou seja, um pensador que vê a moral como questionável, interrogável, em suma, como um problema? o moralizar não seria - imoral?”, Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (1886). Vejamos os poemas:






Uma questão que sempre volta à cena, diz respeito às “formas alvas” e à propalada “obsessão pelo branco” que alguns comentadores mais apressados insistem em atribuir a um sentimento de auto-negação que Cruz e Sousa alimentaria dentro de si por não se conformar com a sua condição de negro. Também esta “tentação branca” passa por uma revisão por parte de um dos poetas do nosso tempo. Para tanto, o ponto de partida escolhido para esta revisão é o da sátira, ou da irreverência algo epigramática. A dicção do poema de Ricardo Aleixo mostra-se entrecortada e seca, a pulsação métrica, de versos em torno de dez sílabas, o confinamento do “excerto” de discurso imprecatório, composto em fonte branca dentro do quadrículo preto, a anáfora pendular entre os sintagmas “eles que são” e “os que não são”, a alta freqüência de monossílabos, em suma, o arranjo desses elementos me leva a pensar num objeto verbal virtualmente rap; algumas palavras são devoradas-enunciadas com raiva e parecem escorregar para o lado avesso do fundo preto. Vejamo-lo:





 O poema de Ricardo Aleixo mantém, além do mais, um excelente diálogo com a famosa sátira “Bodarrada” do poeta e abolicionista negro Luis Gama; nesta peça, “ele arrasa com a prosápia dos nobres, dos brancos” (Haroldo de Campos dixit). No poema verbivisual do escritor mineiro, o branco enquanto cor-símbolo, atributo dos céus sempiternos, que representa a “pureza do não-ser” e a justificativa tosca para uma série de “cólicas místicas” (Luis Silva dixit), ou metafísicas, baixa, graças ao simples acréscimo de um “s”, ao rés do chão, reduz-se finalmente ao pó do coloquial mais transeunte: branco > brancos, ou seja, coletivo de euro-descendentes, “trânsfugas do bem” feito os escravocratas vergastados pelo “grande basta” do poeta gongórico da Ilha do Desterro. Não falta, por outro lado, à expressão brancos, uma dose necessária de “vingança”, isto é, uma forma de tratamento que não valoriza o singular e sim generaliza. Eles que são brancos “que pensem que falem”, se é que são capazes de superior entendimento: branco no branco.
Para encerrar ou, melhor, para suspender, por um instante, o debate, convém dizer o seguinte. Obviamente, a biografia do poeta catarinense não constitui a explicação última, ou o agente desencadeador do encanto perturbante dessas obras. Cada uma delas se sustenta por si mesma, por suas assinaláveis e específicas soluções de som, de visualidade e de sentido. No entanto, o diálogo intertextual estabelecido visa, antes de qualquer coisa, dar forma a uma tradição cujo desenho se assemelharia ao de uma constelação. Um móbile de informação viva, coruscante, flutuando no mais profundo dos negros espaços infinito.




[*] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com e é diretor associado do website WWW.sibila.com.br

1 É a partir de uma dialética da intertextualidade, onde se pode, por assim dizer, descriptografar o significado de um texto nas lacunas de outro, que abordo a epígrafe baudelairiana utilizada por Cruz e Sousa como pórtico ao seu livro Broquéis (1893). Vejamo-la: Seigneur mon Dieu! accordez-moi la grâce de produire quelques beaux vers qui me prouvent à moi-même que je ne suis pas le dernier des hommes, que je ne suis pas inférieur à ceux que je méprise. A citação, além de situar o poeta negro dentro de um determinado repertório ou círculo estético de (auto)referências, e de pô-lo em relação com o continuum da tradição poética, representa, a um só tempo, o inextrincável dilema da esterilidade e da criação, e o risco e a oportunidade de um trajeto poético que se inaugura. Isto é, na remissão ao poeta francês, Cruz e Sousa corre o risco, comum em tal situação, de fazer mera reverência ou apologia. Por outro lado, apontar para a obra do autor de Les fleurs du mal, abre-lhe a oportunidade de um confronto inventivo-comparativo entre a sua voz e um texto que já começava, àquela altura, não obstante as polêmicas que envolveram sua publicação, a se consagrar como peça canônica. O poeta da Ilha do Desterro, por conta das correspondências complexas entre vida e arte, observáveis em sua obra, se apropria de tal maneira do fragmento de Charles Baudelaire, e o “veste” tão bem que, por pouco, não chegamos à conclusão de que Baudelaire não teria o direito de ser o seu autor. A epígrafe perece ter sido feita sob medida à experiência ética-estética de Cruz e Sousa, um poeta que precisou provar durante toda a sua vida - diga-se, mais aos outros do que a si mesmo -, que não era le dernier des hommes. Na voz de Baudelaire, aquelas palavras sabem a sentimentais frivolidades pequeno-burguesas.



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