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[Roland Barthes, CRÍTICA E VERDADE, Ed. Perspectiva, p. 16-17]

“O escritor é um experimentador público: ele varia o que recomeça; obstinado e infiel, só conhece uma arte: a do tema e variações. Nas variações, os combates, os valores, as ideologias, o tempo, a avidez de viver, de conhecer, de participar, de falar, em resumo, os conteúdos; mas, no tema, a obstinação das formas, a grande função significante do imaginário, isto é, a própria inteligência do mundo.”

[a clássica distinção entre forma e conteúdo é apresentada por barthes em termos de “tema e variações”, isto é, tema=forma; variações=conteúdos; observe que é uma outra maneira de dizer (imagem reversa) que todos os conteúdos (ou seja, aquilo que a moral social exige ao artista), que todos os conteúdos já estão dados e, portanto, o que o artista tem a fazer é descobrir novas formas ou maneiras de como dizê-los; “o que a forma poética exige é apenas uma sequência regular e flexível, tão plástica quanto o próprio pensamento” – Fenollosa dixit]

“Existe talvez uma outra razão para a infidelidade do escritor: é que a escritura é uma atividade [fazer=poiésis]; do ponto de vista daquele que escreve, ela se esgota numa série de operações práticas; o tempo do escritor é um tempo operatório e não um tempo histórico, tem apenas uma relação ambígua com o tempo evolutivo da ideias, de cujo movimento ele não participa”.

[não se trata apenas de tempo subjetivo/duração, mas de uma espécie de anacronismo, por isso que, quase como acusação, às vezes se diz que tal poeta está “à frente ou a retro do seu tempo”; o escritor abre um parêntese no seu tempo e inventa a sua forma; não quer dizer que a forma seja intemporal, apenas que ela, a cada momento, assumirá uma nova função significante na sua interação com o mundo]

 “O tempo da escritura é, com efeito, um tempo defectivo: escrever é ou projetar ou terminar, mas nunca “exprimir”; entre o começo e o fim, falta um elo, que poderia entretanto passar por essencial, o da própria obra; escreve-se talvez menos para materializar uma ideia do que para esgotar uma tarefa que traz em si sua própria felicidade. Existe uma espécie de vocação da escritura à liquidação; [a ideia de que cada texto inaugura e exaure uma chance de linguagem...] e embora o mundo lhe devolva sempre sua obra como um objeto imóvel, munida de uma vez por todas de um sentido estável, o próprio escritor não pode vivê-la como um alicerce, mas antes como um abandono necessário: o presente da escritura já é passado, seu passado um anterior muito longínquo; é entretanto no momento em que ele se desliga ‘dogmaticamente’ (por sua recusa de herdar, de ser fiel), [o escritor de verdade abandona o terreno arduamente conquistado, trata-se de um ato de guerrilha estética...] que o mundo pede ao escritor que sustente a responsabilidade de sua obra; pois a moral social exige dele uma fidelidade aos conteúdos, enquanto ele só conhece uma fidelidade às formas: o que o segura (a seus próprios olhos) não é o que ele escreveu, mas a decisão obstinada de o escrever”.

[abandono necessário: talvez seja por isso que para alguns artistas é tão exasperante falar sobre o seu trabalho, ou sobre o seu significado, e seguindo o raciocínio de Barthes, perguntar ao autor o que ele quis dizer, do ponto de vista da fidelidade à forma, seria algo, em contrapartida, imoral]


Comentários

dade amorim disse…
Gostei de receber esse texto.
Por favor, continue, certo?

Obrigada e abraço.

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