- Daniel Rosa dos Santos é um escritor malandro, quer dizer, sua aposta, sua incisão particular, não está interessada na manutenção da Literatura como sistema; como escritor malandro ele quer perpetuar, na precariedade da fruição, o valor suntuoso do texto; seu ego scriptor não tem muito que ver com a imagem do competente e pálido escritor contemporâneo. A empreitada do livro feito no muque, livro feito à mão (um feito de prazer análogo ao do texto), materializa nesse gesto de oficina irritada (artesanato não-mercantil) a imaterialidade de sua escritura, que é tanto malandragem quanto linguagem.
- A prosa de Daniel Rosa dos Santos é malandra também na acepção em que Antônio Cândido, no estudo “Dialética da malandragem”, caracteriza o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, como o paradigma do “romance malandro”. Um desocupado escritor convoca um desocupado leitor a um jogo de enganos. Pau de Mulungu é mais um lance desse jogo: perpétuo móbile a evocar vozes alheias. O romance de Daniel Rosa dos Santos parte de modelos estilísticos que servem de base à tradição de prosa moderna feita no Brasil, isto é, Pau de Mulungu estabelece conjunções e disjunções com os estados narrativos de Machado de Assis e Oswald de Andrade. Meu esboço não descarta outras confluências (aliás, algumas delas aparecem em várias epígrafes esparsas ao longo da história), me parece apenas que esses dois escritores têm papel importante na forma e na cadência da narrativa de Daniel Rosa.
- Assim, Pau de Mulungu se desenvolve por meio de uma escrita de fragmentos, takes, cenas e confissões. O breve romance acompanha os transes de J. R. Batista, os índices de sua vida. Biografemas, esses parágrafos em cujo interior deparamos uma justaposição de memórias e de diário prosaico que fazem o narrador aflorar e se dissipar de modo vertiginoso. Pau de Mulungu é pontuado, aqui e ali, por lancinantes trechos de manuscritos, essas aparas narrativas, pedaços de um espelho onde a matéria narrada se reflete e ao mesmo tempo se anula, pois a imagem resultante acaba por ser inapreensível em seu conjunto. Num desses manuscritos lemos a inscrição: “A ficção é a única verdade”.
- Tendemos a concordar facilmente com isso. Com efeito, ficção é algo que está além ou aquém da verdade e da mentira. Em outras palavras, a ficção tem um estatuto próprio. Mas Pau de Mulungu, tal como aquelas obras que com o tempo são reputadas como relevantes, diz a esse respeito algo diferente, ou seja, não é que a ficção seja a única verdade, mas, antes, que no escopo do texto a função estética (e sem desprezar aqui “função” em sentido matemático, isto é, a relação entre conjuntos), entranhada à aventura da representação, instaura uma verdade múltipla: um desdobramento de sentidos. E o leitor notará que Daniel Rosa dos Santos em Pau de Mulungu lida de maneira atenta e malandra com essa noção.
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