Confesso, em primeiro
lugar, que o teor destas anotações relativas a Nelson Mandela e a uma série de
coisas que no momento cercam sua figura, será um tanto aleatório e subjetivo; seria
descabido tentar fazer as vezes do historiador ou do sociólogo. Meus pontos de
vista sobre o assunto são parciais, isto é, por óbvias razões (ao menos para
mim) tomo o partido de Mandela. De resto, com um rápido lance de dedos no
teclado do computador ou na tela do tablet, o interessado estará às portas da Wikipedia e aí encontrará muita
informação sobre Mandela.
Ezra
Pound disse em algum lugar – se a memória não me engana – que todos os homens
deveriam se unir para cantar o Ulysses
de James Joyce. Com o pedido entusiasmado, Pound procura dar conta da
importância de tal obra, tanto para o seu tempo, como para o que viria a
seguir. Trocando duas ou três palavras da frase de Pound, ela caberia à
perfeição para traduzir meu sentimento e o de muitos outros em relação a Nelson
Mandela e sua simbologia. Embora o
anúncio de sua morte já estivesse sendo esperado há meses (sérios problemas de
saúde fizeram com que fosse hospitalizado já no final de 2012), a confirmação
do fato foi avassaladora. Todos, homens e mulheres, negros e brancos, ex-jogadores
de futebol, astros da música pop, celebridades, religiosos, filósofos, twitteiros,
casados e solteiros, capitalistas e marxistas, enfim, todas as instâncias do
universal Homem se uniram para cantar Mandela.
O ocorrido gerou um falso problema. Para os
menos informados, se impôs a sensação de que Mandela, graças também à profusão
de signos que as diversas mídias fizeram brotar ao redor dele, se apresentava
como algo incontornável, isto é, não importava para onde o sujeito se voltasse,
aquele senhor negro, de carapinha branca, estaria lá. Então, para os
retardatários que tiveram de tomar pé do que estava acontecendo assim meio às
pressas e a todo custo, a melhor anedota que circula nas redes sociais a este
propósito é um tweet, provavelmente fajuto,
que diz: “Agora todo mundo virou fã do Nelson Mandela, mas duvido que conheçam
uma música dele”. Com efeito, é preciso conhecer a música de Nelson Mandela.
Diante da
interpretação sincera e seletiva de uns e do compartilhamento por inércia de
outros, fico a pensar. Quando uns e outros se põem a desfiar elogios desmedidos
a respeito do trabalho ou da biografia de um negro, sempre me preparo para o
pior. Por favor, que os eventuais objetores não invoquem aqui a baixa estima,
nem suponham que estou na defensiva, nada disso. O problema não é bem esse.
Segundo Friedrich Nietzsche “o comentário demasiadamente elogioso produz mais
indiscrições que a censura”. As louvações, na verdade, têm fundo culposo e se
efetivam sem que possamos lhes prever as consequências: desvelam a imprudente
face do preconceito. Para compensar toda uma série de episódios aniquiladores
do ânimo de muitas personalidades negras, fundamentais para a cultura e o
pensamento universais, o senso comum carrega nas tintas da apologia purgativa,
tanto sobre aqueles que parecem ter vivido vidas que poderiam ter sido, mas que
não foram, quanto os que escaparam à condenação da subalternidade. Parodiando o
adágio relativo à vingança, pode-se dizer que tal espécie de elogio é um prato
que se oferece frio ao seu maior interessado. Por essa razão, Cruz e Sousa é o
Dante negro; Leônidas da Silva, o Diamante Negro; Elizeth Cardoso, a Divina, e
assim por diante. E, agora, Mandela é o campeão da paz. O preto-velho
pacifista. Mas em respeito à sua história, essa imagem edulcorada e fraca – que
só serve pra fazer o sinhozinho branco dormir tranquilo –, essa imagem mesma precisa
ser revertida.
Antes
de tudo, é bom lembrar que até há bem pouco tempo Mandela ainda fazia parte de
uma lista de terroristas feita pelos órgãos de segurança dos EUA. Como escreveu
Idelber Avelar (professor na Tulane
University), trata-se de uma grande balela associar Nelson Mandela à
prática da “resistência pacífica” ou da “não-violência”, ainda mais considerando
como pano de fundo a luta antiapartheid na África do Sul dos bôeres mais
renitentes. Mandela foi um dos fundadores do braço armado do Congresso Nacional
Africano, o Umkhonto we Sizwe (a
Lança da Nação). Diante do tribunal que pretendia condená-lo à morte, Mandela
argumentou: “no começo de junho de 1961, depois de análise longa e angustiada
da situação sul-africana, eu e alguns colegas chegamos à conclusão de que, já
que a violência neste país era inevitável, seria errado e irreal que os líderes
africanos continuássemos a pregar a paz e a não violência, num momento em que o
governo reagia com a força a nossas demandas pacíficas”. Enfim, na luta pelo
fim do apartheid, Mandela lançou mão de todas as estratégias de que
dispunha, às vezes apoiou enfrentamentos não-pacíficos, outras vezes, lutas
pacíficas. Idelber tem razão quando afirma que nenhum líder revolucionário escolhe
“violência” ou
“não-violência”, assim abstratamente, divorciado do contexto em que está imerso,
como se se tratasse de fazer uma escolha baseada num maniqueísmo sem ponto de
retorno. Viver
como homem humano não é nem um pouco fácil. Embora não pareça possível restaurar algumas
coisas, nossas interpretações estão sempre dispostas a fazer o mundo recomeçar.
A questão é que, aparentemente, ganhamos mais na ficção. Em seu livro Nove ensaios dantescos, Jorge Luis
Borges propõe algo me parece importante referir aqui: “No tempo real, na
história, sempre que um homem depara com diversas alternativas opta por uma,
eliminando e perdendo as outras; não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha
ao da esperança e ao do esquecimento”.
Ao
contrário de outros líderes revolucionários do século 20, Nelson Mandela teve,
felizmente, uma vida longa e, em certa medida, logrou mais vitórias do que seus
iguais. É sabido que muitos dos representantes dessa linhagem, onde Mandela
assume posição de relevo, morreram precocemente e de forma violenta. Por meio
de narrativas, o mais das vezes, hagiográficas, dedicadas a esses líderes –
mortos em meio ao salto da mudança –, podemos notar que o desaparecimento deles
acaba se tornando mais incômodo para o poder contra o qual investiram do que quando
estavam vivos. Mas estamos convencidos de que isso se converteu num clichê,
seja na lógica dos eventos históricos, seja na estrutura, por exemplo, das
tramas fílmicas.
Com
sua morte, Nelson Mandela, inclusive pelo fato de também ter sido um estadista,
serve, infelizmente, de oportunidade para que políticos ou os chamados homens
públicos e líderes mundiais, neste momento, se pronunciem além do tolerável sobre
sua biografia. Cada um deles aproveita para beliscar o que quer que seja no
banquete funerário. Discursam sobre questões para as quais jamais dispensaram o
menor interesse em suas vidas públicas, mas que, por outro lado, foram questões
tão importantes para Mandela que por várias vezes, em momentos cruciais de sua luta
pelas liberdades, chegou a dizer que se fosse preciso daria a vida por elas. A
condição totêmica de Mandela faz com que se submetam a semelhante
constrangimento; temerariamente se aventuram a opinar sobre um homem que os achataria
sem mais, se fosse possível lhes conceder alguma comparação com ele. Pois
o refinamento em que por acaso esbarram, quando confinam com a poderosa simbologia
de Nelson Mandela, lhes promete aquilo de que são privados por serem
demasiadamente canastrões.
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