Jeanne Marie Gagnebin,
numa passagem da palestra-ensaio “As formas literárias da filosofia”, se ocupa
de modo mais detalhado de uma lista incompleta de formas literárias ou de
estilos de escrita no interior da filosofia. Segundo a comentadora, essas
formas se relacionam a duas circunstâncias, a saber, as condições históricas
precisas em que ocorrem e a separação entre uma filosofia de caráter
escolástico (Schulphilosophie) e uma
filosofia de mundo ou cosmo-política (Weltphilosophie).
Ambos os conceitos relativos aos tipos de exercício de filosofia são
apresentados por Kant em Crítica da razão
pura na perspectiva de “tentativas de filosofar”. Diante de um projeto
arquitetônico (o filosófico) em permanente construção, “cujo edifício muitas
vezes é tão diverso e tão mutável”, Kant admite que o que se pode fazer é tão
só aprender a filosofar exercendo “o
talento da razão na aplicação de seus princípios gerais em certas tentativas
que se apresentam”. Sem a pretensão de corrigir o filósofo, poderíamos
acrescentar, tendo em mente as ideias de Gagnebin sobre as formas literárias da
filosofia, que aprender a filosofar
supõe ainda desenvolver o talento de um estilo literário, uma capacidade de
plasmar formas expressivas de pensamento: formas de linguagem.
Desta maneira, no
primeiro fragmento do texto, Gagnebin apresenta três conjuntos de questões que,
segundo a analista, dizem respeito tanto à sua autorreflexão sobre o caráter da
literalidade da linguagem filosófica, quanto da própria autorreflexividade da
tarefa da filosofia enquanto discurso necessariamente determinado por jogos significantes
não só de linguagem, mas de conceitos. Neste sentido Gagnebin reforça a tese de
Ludwig Wittgenstein – que cito de memória – segundo a qual
fazer filosofia é uma tarefa que supõe uma investigação sobre os limites da
própria linguagem. Em diálogo com a proposição de Wittgenstein, J.
M. Gagnebin afirma, em primeiro lugar, que “em filosofia não se trata somente
de analisar linguagem, mas, de modo mais preciso, analisar textos escritos”.
Gagnebin pretende dizer que tal análise precisa partir da aceitação de que a
linguagem e os conceitos se encontram unidos e tensionados nos textos
filosóficos. Estes textos cujas escrituras se materializam numa variedade de
formas problematizam e respondem a questões relativas a tradições filosóficas
distintas, porém correlacionadas.
A este propósito,
Gagnebin avança no primeiro fragmento do texto a ideia de que a diversidade das
formas literárias se relaciona ou repercute na separação entre os dois tipos de
exercício da filosofia, aqueles descritos por Kant. Para a comentadora, em
alguma medida, diferentes tipos de exercício de filosofia engendram ou exigem
formas literárias diferentes para a consecução dos respectivos escritos
filosóficos. Os estilos filosóficos do exercício de reflexão da filosofia de
mundo ou cosmo-política (Weltphilosophie),
segundo essa noção, tenderiam a ser diferentes dos estilos coerentes com o
discurso filosófico das práticas escolásticas institucionais do ensino de
filosofia (Schulphilosophie).
As formas literárias da
filosofia, as múltiplas maneiras assumidas pela abordagem filosófica, se
prestam à reinvenção dos limites e das bases daquilo que o censo comum – talvez
convencido pela aparente hegemonia de uma Schulphilosophie
– entende como sendo o foco da Filosofia (o uso da maiúscula evoca a
acepção convencional ligada à disciplina), isto é, uma “linguagem racional
discursiva”.
No entanto é
interessante notar que no segundo fragmento do ensaio de Jeanne Marie Gagnebin,
no qual a autora apresenta sua lista provisória de formas literárias em
filosofia, podemos perceber que a tradição filosófica, materializada através do
seu acervo de textos escritos, é ela mesma uma permanente ampliação e
reinvenção de formas de linguagem e de estruturas de pensamento. Tanto em sua
narrativa histórica, quanto nos dois polos de exercício da filosofia, o
escolástico e o cosmo-político, a diversidade de formas literárias acompanha – poder-se-ia
dizer como uma “segunda natureza”? –, à maneira de um contraponto, a
diversidade dos construtos conceituais filosóficos. Este breve quadro apresentado
por Gagnebin das formas literárias da filosofia criadas e transformadas, seja
no transcurso da história, seja no interior do exercício deste ou daquele
filósofo, parece justificar com sobras sua crença de que aquilo que um filósofo
diz/escreve (“conteúdos teóricos”)
não está ligado acidentalmente ao modo
como (“formas linguísticas”) esse filósofo diz/escreve. Tal diversidade de
formas é, a um só tempo, produto e problematização de (outros) textos e contextos
nos quais está entretecida.
Assim, o pensamento,
seja ele confessional, dialético, aforístico, dramático, poético ou analítico,
e que tem a capacidade de exceder o que está dado por uma linguagem racional, é
inextrincável das formas expressivas que assume.
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