Anotações sobre a exposição Thomas Bernhard e seus seres vitais
Período: de 16 de outubro até 02 de
novembro de 2014.
Local: Memorial do Ministério Público do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre.
Se é verdade, como afirma Thomas Bernhard, que quanto mais nos aproximamos de um escritor, mais nos afastamos dele, pois ter acesso a aspectos de sua vida pessoal e privada significa, em alguma medida, perder de vista o significado de sua literatura, então imagino que para quem o desconhecia totalmente como eu, conhecer, ainda que de modo superficial, alguns seres e signos de sua experiência trata-se de um gesto do mais inócuo voyeurismo. Por outro lado, me senti como se eu vagasse por uma câmara mortuária alheia (misto de nostalgia e pudor) ou como se eu inspecionasse o álbum-lápide de um morto com quem eu não tivesse tido a menor intimidade.
No entanto, a exposição serve também de convite a um mergulho na obra de Thomas Bernhard, porque, sendo um recorte cenográfico e abreviado das realizações do artista ela deixa muitas lacunas que só serão preenchidas, naturalmente, com um investimento de leitura, atenção e pensamento dedicados ao texto, à obra ela mesma. Assim, com relação ao que Thomas Bernhard escreveu é necessário que eu o leia para fazer um cotejo mais eficiente com a exposição que o toma como sua metáfora informativa.
O que levo da exposição é um desconforto. Explico. Além de fotos, retratos do autor, o visitante depara manuscritos, cadernetas, cartas, bilhetes, blocos de notas, exemplares de edições originais de seus livros, enfim, uma série de objetos e texturas em relação aos quais as pessoas da minha geração sempre tiveram o hábito ou a mania de manusear, folhar, passar o dedo nas linhas desses papéis para sentir a ranhura produzida pela escrita de punho. Além disso, todos esses objetos são portáteis, isto é, são para e estão ao alcance da mão, mas na exposição isso é impossível. Claro que tal situação não é um problema exclusivo da exposição em questão. Na verdade esse é o dilema ou o dado controverso de exposições dedicadas a escritores. De certa maneira, com relação à pintura, às artes visuais, por exemplo, o visitante sabe que deve mais olhar e observar do que qualquer coisa. Por outro lado, no que respeita a um escritor e seus produtos tudo tem a ver, me parece, com bibliotecas, escrivaninhas e prateleiras de livros, esse mobiliário que nos convida sempre e destacar um volume dentre outros volumes para que efetivamente o efeito estético do literário aconteça.
Mas na exposição o prazer estético e tátil que acompanha os livros não nos é permitido. Tudo resta sob a proteção de vidros, caprichosos armários guardando uma literatura tomada metaforicamente quase como um acervo de porcelana chinesa. O livro, um exemplar entre os milhares que formam a edição, agora permanece quieto, em situação estatuária, dentro de uma caixa de vidro, mais joia perene do que objeto manuseável feito de material vegetal, celulose.
Thomas Bernhard, segundo parece confessar, era um grande ensimesmado. Notar esse fragmento, essa apara de jornal íntimo em que escreve: “O que conta é a eternidade: cair no extremo oposto e não me preocupar mais nem um pouco com a casa, com as crianças, etc! Preciso dizer isso a Diede (Anna Bernhard) numa ocasião solene”. Casa e família, isto é, em uma palavra: a vida que, com insensível inteligência, o escritor transfigura na cifra desprezível de um etc. Talvez por isso mesmo sua indisposição com o contexto social, e essa imagem de enfant terrible com que se deixa reconhecer envolvido sempre em polêmicas. Mas ele, enquanto metáfora revigorada do escândalo frente ao establishment, está, de fato e de forma pública, em seus livros.
Todos os elementos
colecionados no espaço expositivo nos convidam a uma espiadela nos seres vitais
aos quais dá de ombros Thomas Bernhard, entretanto só vemos fragmentos
imagéticos através de estreitas frestas, escassos biografemas (índices da
passagem de diversos seres de linguagem através de sua vida). Não vislumbramos
a dor nem a delícia que Thomas Bernhard entreteve com os seus seres vitais.
Dentro de vidros e cristaleiras (ícones da vida doméstica recusada pelo
escritor) que nos afastam dos seus signos e objetos prosaicos, ao mesmo tempo
em que provocam nosso apetite, sob o invólucro dos cristais, agora espelhos,
vemos parcial e inadvertidamente apenas a incompletude do desejo em nossas
faces de transeuntes visitadores do sensível.
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