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as figurações às escuras em Uma Denise


Segundo a tese irônica do poeta Décio Pignatari, uma revolução completa em literatura pressupõe duas meias revoluções, isto é, uma a se cumprir na prosa e outra na poesia. Mas essa tese admite algumas variações não menos irônicas. Se considerarmos que, grosso modo, tanto em prosa quanto em poesia – e, de resto, em qualquer forma de linguagem nomeadamente estética – existe uma tensão entre modos mais alusivos e modos mais diretos de representar a coisa, então podemos afirmar que um percurso textual completo deve, em algum momento, conciliar esses modos de representação. O fato de o escrito poder se situar mais ou menos rente a uma suposta realidade (verismo) diz algo a respeito, apenas, de sua constitutiva determinação para o indecidível. Avançar qualquer outra análise cujo parti pris despreze essa disposição significante – plasmada inapelavelmente na linguagem – contraria a moderna categoria da ficção que se constitui como um tipo de discurso que não cabe nem sob a divisa da verdade e tampouco sob a da mentira, ou seja, Roberto Amaral, também de posse de tal noção, sabe que a literatura tem um estatuto próprio. Deste modo, tendo a acreditar que o prosador, primeiro com Le mot juste e, agora, com Uma Denise, pretende materializar e atualizar, dentro das condições do seu irredutível apetite de linguagem, essa feliz intransigência entre o discurso do mundo e o mundo do discurso.

Com efeito, o interesse de Roberto Amaral é, antes, o de revelar o atrito amoroso entre um e outro do que apostar em uma superação supostamente revolucionária. Por isso deixo de lado, aqui, as noções de revolução ou de invenção tão caras ao poeta concreto. Ainda que tais conceitos tenham colaborado fortemente para autonomia da literatura no que respeita à sua interação com a sociedade e as outras áreas do conhecimento, já não tenho um apetite tão grande para, digamos assim, me solidarizar de modo indiscriminado com os adeptos da invenção ou da revolução permanente. Invenção virou commodity. Bolha especulativa. Mas a literatura (poesia/prosa) não se define apenas como invenção ou ruptura. Em muitos poemas velhos a beleza está mesmo nessa condição do texto que envelheceu onde podia envelhecer.

Por essas e outras, suspeito que Roberto Amaral concorde com Michelangelo Antonioni no seguinte ponto. No filme A noite (1961), o diretor faz o personagem Giovanni Pontano, interpretado por Marcello Mastroianni, um escritor em crise afetivo-intelectual, afirmar que “não fossem os prazeres, a vida seria suportável”, ao que replica sua esposa Lidia (Jeanne Moreau), mais ou menos assim, “que bela ideia, é sua?”, e Giovanni responde, “não, não é minha; não tenho mais ideias, só tenho memória”. Invenção como hesitação entre evocação e invocação. Em literatura começo a suspeitar que a reiteração (mnenosine) talvez seja até mais valiosa que a invenção. E, Roberto Amaral, antes com Le mot juste – a multiplicação de textos que se dobram sobre si mesmos – e, agora, com o relato Uma Denise – onde o mundo, como figura de fundo, se mostra menos opaco – segue nessa cadência narrativa comprometida com a mais fina arte da prosa. Porque não é verdade que um prosador, hoje, visando alguma permanência, tenha que lançar mão de um estilo atraente ao gosto de um leitor-consumidor. Uma Denise serve de argumento contra o pretenso fato consumado de que toda a prosa contemporânea se limita mais com os interesses do mercado livreiro-editorial e do sujeito cult e suas ordinárias imposturas. Roberto Amaral tem a coragem tanto de pôr em causa tal situação, como de inventar o seu leitor, ao invés de tentar escrever de um modo a não perturbar a percepção dele. Diante de um texto radicalmente poético, o leitor, mesmo que tomado como um interlocutor mais palpável, já não é mais aquele. Frente a frente, misturados às ranhuras do texto, restam um ego scriptor e um leitor in absentia.

Assim, o convite a esse diálogo franqueado à deriva semântica motiva a literatura de Roberto Amaral: o texto escrito em vista de um leitor não amestrado; o pestanejar sobre as páginas do livro, sugerindo que o insumo de um sono escuro conduz esse leitor, a todo instante, a reconfigurar o processo de significação proposto pelo autor e sua máquina ficcional.  Ainda que, aparentemente, sua prosa, em Uma Denise, tenha ficado, por assim dizer, mais deste outro lado do aquém-invenção, ao contrário do que acontece com Le mot juste, ainda assim, testemunhamos um percurso textual que, não obstante a tese de que não se pode mais narrar, afirma que as palavras com que relata o que acontece e o que não acontece são, ao fim e ao cabo, a própria narração.

Roberto Amaral é aquele tipo de prosador que guarda na memória, na decupagem dos biografemas, na cadência articulada dos fragmentos ficcionais, o acento átono, a pausa, a lacuna, e tudo isso a contrapelo da redundância novelística, isto é, ele não presta atenção no acento forte, no verificável, no resumo frouxo da história – a sinopse. Aliás, já na primeira linha de Uma Denise ele mostra com que ferramentas dará estrutura ao seu relato de visionário sem visão, vejamo-la: “Desde um confuso ponto de vista é que narro o que narro”.

Com efeito, o texto de abertura da primeira parte de Uma Denise, introduz o leitor, por meio de uma série de senhas intertextuais, neste relato em que o mundo, a um só tempo, é figurado “a sério e por brincadeira”. Desde o já mencionado “confuso ponto de vista”, tomado como linha compositiva, o universo narrado de Uma Denise assumirá os contornos coerentes com tal peculiar modo de enxergar. Relato híbrido, tateante frente à “esbarrável escuridão”. Roberto Amaral propõe uma voz narrativa – um texto como anamorfose, “apenas metáforas e celulose” – que tanto pode evocar, digamos, o cego Tirésias, quanto o poeta metafísico Alberto Caeiro, pois, em algum momento do relato que se dobra sobre si mesmo, diz-se que a escuridão de onde ele emerge é “um modo controverso de ver as coisas”, e esse “modo de ver as coisas é o modo nenhum”. Roberto Amaral, esse um que simula o significado e dissimula a decodificação.

   Uma Denise, prodigiosa façanha textual. Relato variegado, porém extremamente concentrado. O apetite cervantino de Roberto Amaral incita-o a abrir a gaveta mortuária de todos os textos e deste emaranhado salta o desejo narrativo. Caracteres erradios. Irrecusável aventura. Périplo equívoco em que o leitor ulisseida, leitor borgeano, leitor-ninguém, aventureiro e venturoso, reencena “a bela e terrível humana condição” em meio ao mar controverso das ficções. 

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