por Ricardo Riso[1]
A poesia des(a)fia a linguagem. O poeta, seguindo a
origem grega da palavra, é aquele que faz. O poeta cria e recria a linguagem.
Diante disso, temos representações poéticas dissonantes que não se enquadram em
determinadas tendências, escolas e sentidos assinalados por uma crítica
acadêmica que, muitas vezes, se posiciona na dianteira dos poetas e suas obras.
Nessa perspectiva, deparamo-nos com certas amarras na
literatura brasileira e nas literaturas africanas de língua portuguesa baseadas
em questões que fogem da simples análise do texto literário, mas que envolvem
aspectos identitários, étnico-raciais, de classe, de gênero, entre outras
categorias que contribuem para um caráter homogêneo dessas literaturas
constituídas em cânones, por conseguinte, relacionadas a ideias identitárias
que representam seus países.
Trazer para o centro do debate a questão racial aguça
a percepção para restrições do campo da literatura comparada, colabora para o
tensionamento da(s) diferença(s) que interroga(m) o(s) cânone(s) (PADILHA, 2002)
dessas literaturas. Embora a literatura comparada, apoiada aos Estudos
Culturais, pregue a transversalidade, o comparatismo plural e descentrado
abrindo espaços para tipos de expressão estético-literárias até então excluídos,
questionando a supervalorização de um sistema baseado na Europa, priorizando a
emergência das questões de identidade cultural e nacional, deslocando-se para
grupos minoritários e assumindo a exigência de revisão dos cânones literários e
da história literária (COUTINHO; CARVALHAL, 2011), ainda que represente um
avanço nos estudos comparados brasileiros, identificamos, com pesar, a ausência
da questão racial e de diálogo entre negras e negros africanos e brasileiros,
uma vez que há predomínio do modernismo brasileiro nos estudos comparados com
as literaturas africanas, com o agravante que estas dominadas por um cânone
luso-descendente[2]. Recorte também
questionado pela asfixia que anula o mútuo conhecimento analítico de
pesquisadores negros africanos e brasileiros quando passamos para o campo da
crítica, a partir da autoria negra africana e brasileira (AUGEL, 2013). Em
razão disso, tendo como foco os estudos realizados no Brasil, percebemos um
problema de representação compatível às desigualdades sociorraciais em nosso
país.
Diante do exposto, partimos para os estudos
encruzilhados (SANTOS, 2013) como forma de contraposição às insuficiências da
Literatura Comparada e, assim, trazer um diálogo entre poetas negros do Brasil
e de Moçambique, como assinala o crítico literário José Henrique de Freitas
Santos:
[o]s
estudos encruzilhados (estudos comparados negros que se perfazem no conflito,
tomando a incoerência, o paradoxo, a tensão como força motriz) apontam como
potência para uma arqueo-genealogia do saber na literatura ainda a ser
explorada (...) [de] escritorxs negro-brasileirxs [que] estão à nossa espera
para pô-los em diálogo com a África Negra, investimento de toda uma vida de
intelectuais como Joseph Ki-Zerbo e Abdias do Nascimento. Os estudos
encruzilhados propõem uma dinâmica constante de abalo à normalização do campo,
já que a filosofia do paradoxo que rege Exu é o logos da encruzilhada (SANTOS,
2013, p. 51).
Dessa maneira temos a encruzilhada (MARTINS, 1997)
como operador teórico, como local de encontro e desencontros, fusões e
rupturas, convergências e divergências, onde o que está posto se refaz e refaz
e refaz, propondo a horizontalidade das diferenças trazendo uma nova/outra
perspectiva móvel e deslizante para o debate no campo.
Com isso, temos a emergência dos estudos encruzilhados
dialogando com uma postura afrorrizomática, que se inspira no conceito de
Deleuze e Guatarri, a partir do rizoma da botânica e sua forma fluída e
descentralizada, não seguindo hierarquias. Com os afrorrizomas temos a ruptura
da submissão ao modelo centralizador luso como determinante para as literaturas
do Brasil e da África de língua portuguesa intensificando as relações negras
entre esses países, até então ostracizadas por um modelo que perpetua a lógica subalterna
imposta pela escravização (SANTOS, 2013).
Sendo assim, com essa percepção afrorrizomática[3] propomos
encruzilhar as literaturas negro-brasileira e moçambicana pelos livros “Cair de
Costas” (2012), do brasileiro Ronald Augusto, e “Mafonematográfico também
Círculo Abstracto” (2011), do moçambicano Sangare Okapi, tendo como perspectiva
as experimentações ousadas com a linguagem, muitas vezes partindo para poemas
visuais ou com reduzida sintaxe realizados por estes dois autores, questionando
o fazer poético, expandindo-o, fragmentando-o, desafiando os condicionamentos
da crítica.
Ronald Augusto é poeta, músico e ensaísta, já com
longo percurso poético remetendo ao início dos anos 1980, possui uma obra
ensaística de enorme apuro e aguçada percepção literária, também participa
ativamente dos debates raciais brasileiros. A questão racial aparece com
frequência em suas obras, mas sem a centralidade e a linguagem mais engajada de
outros nomes de sua geração inserida na literatura negro-brasileira (CUTI,
2010). Essa vertente literária tem na questão racial, no combate e denúncia do
racismo, na valorização e afirmação da identidade negra brasileira, na revisão
crítica da história oficial, no uso da oralidade negra e da religiosidade de
matriz africana, na reivindicação da autoria negra de autores canônicos como
Cruz e Sousa, Machado de Assis e Lima Barreto, na reconfiguração das
personagens negras e de temas negros na nossa literatura como alguns dos seus
pressupostos.
Entretanto, a obra poética de Ronald Augusto
distancia-se dessa vertente literária por não explicitar essas questões,
estando dentro e fora, abrindo-se para o que chamamos de pluralismo dos
transnegressores[4], conjunto de poetas negros
brasileiros[5] com obras mais
comprometidas com a reinvenção da linguagem, ainda que tenha uma vertente
historicista também acentuada (PEREIRA, 2010), arriscando-se por caminhos
complexos que, muitas vezes, o discurso engajado não proporciona.
Sangare Okapi nasceu em Maputo, capital de Moçambique,
anteriormente publicou “Inventário de Angústias ou Apoteose do Nada” e “Mesmos
Barcos ou Poemas de Revisitação do Corpo”, ambos de poesia. Apesar da enxuta
obra, Okapi vem se consolidando como o mais radical e inovador poeta de sua
geração. Okapi distende-se de uma lírica calcada na poesia do eu (SECCO, 2003),
ou de afetos, ou erótica que ambienta boa parte das obras de seus pares desde
os anos 1980. Okapi investe em uma madura intertextualidade de referenciais
moçambicanos e de outras literaturas, e mostrando com desenvoltura o
amadurecimento de sua vertente concretista, de investigação visual e abstrata,
caminho este predominante no seu livro e objeto de análise neste artigo.
Já “Cair de Costas”, de Ronald Augusto, é uma reunião,
em ordem decrescente, de publicação dos livros do autor no período de 1992 a
1983. As duas obras desses autores esgarçam experiências poéticas ao investir
em fissuras de linguagem (ROLIM, 2012) que desestabilizam as características
das literaturas em que estão inseridas, sendo merecedores de maior atenção
devido ao caráter subversivo e criativo no uso da palavra, surpreendendo o
leitor, tornando-o, como toda boa poesia, participante do poema, mas, que aqui
ganha em surpresa pelo que não diz, pela incompletude que causa espanto e faz
refletir:
diz
trair a
tradição
inventar
a (AUGUSTO, 2012, p. 117)
Poesia de ruptura, de inconformismo com as presilhas
das correntes estéticas, de ironia diante das vanguardas e seus vazios
conceituais; poesia concisa, de versos com a força do desagradável corte de uma
farpa, questionadora da presunção da literatura de nosso tempo. Nesse sentido,
o poeta dá continuidade ao seu manancial intersticial:
leitor ulisses
homero (
e) m
pessoa
ninguém
está de
posse do
pós (AUGUSTO, 2012, p. 119)
A poesia de Ronald Augusto possui o mérito de
confrontar “palavras sempre em vias de, prestes a” (ROLIM, 2012, p. 181), a
palavra esvaindo-se, rompendo a comunicação, pressionando o leitor com sua
fragmentação, com o fim abrupto, aberto de possibilidades... para o quê? Cabe
ao leitor decidir quando se depara com uma poesia que propõe esse embate, pois
(...) não
é o poeta
quem
maldiz: é a linguagem
ela mesma
em toda a
sua
radicalidade
(AUGUSTO, 2012, p. 48-49)
É esse compromisso sem medo da síntese, de ferir por
meio da inovação a percepção de quem a lê, de seguir pela imprecisão de dizer. Esse
é o caminho trilhado por Ronald Augusto como o seguido por Sangare Okapi, que
abre o seu livro com um “pórtico” contendo epígrafes que muito anunciam o que o
leitor encontrará nas páginas do seu “Mafonematográfico também círculo abstracto”.
A primeira é uma passagem de um nome histórico da poesia moçambicana, Sebastião
Alba: “Escrevo com terrível dificuldade: rescrevo, colo, interpolo, publico um
poema como quem o espelha. Armo a oficina em qualquer parte, sem tabuleta que o
indique. Ninguém sabe, mas ali sua-se”(OKAPI, 2011, p. 5).
Nos poemas de Okapi encontraremos, o labor, a vontade
exacerbada do seu comprometimento – es// crevo es// cravo// es// cravo/ es//
crevo// pede o momento// meu movimento// algum ofício// artifício (OKAPI, 2011,
p. 34). Temos a nítida influência da poesia concreta e neoconcreta brasileira (PEDRO,
2012), os poemas de Okapi não estão preocupados com metaforização discursiva, beletrismo
e outras facilidades, mas com a forma, a sintaxe rarefeita, seu aspecto visual,
com a exploração dos espaços em branco, a abstração do poema, como em “Canção”:
fina flor
doce dor
seta
certa
letra
morta
pauta
posta
silêncio
composto (OKAPI, 2011, p. 22)
É nítido que a sua perspicácia está muito mais aguçada
que no seu livro anterior, “Mesmos barcos”, pois, quando analisamos aquele livro
apontamos para o caráter tímido da veia concreta que ali se apresentava, mas
que aqui atinge um nível de risco único entre os seus pares, como no poema
“Caminhos”:
acende a noite
o dia a paga
enterra a tristeza
a noite a fugenta
inventa faça
o mar amor (OKAPI, 2011, p. 10)
O poema ganha com as diferentes direções de leituras
que podem ser feitas em razão da velocidade dos vocábulos que se apresentam nos
versos, que ganham novos contornos pelo estímulo causado pelo espaço vazio,
trazendo a possibilidade de uma leitura não-linear estimulada pelos vazios.
Estamos à frente de um poema que não apenas se lê, mas se vê. Entretanto, a
poesia de Sangare Okapi quer mais, para isso, utiliza um texto de E. Lemos
& M. Ngwenya como epígrafe para abertura do derradeiro caderno de seu
livro, intitulado Raio Segundo, “[e]stamos perante uma gramática pouco usual no
país (...), inédita. Estas estranhas formas que brotam ora verticais ora
horizontais ou oblíquas. São gritos contra as regras académicas, apesar de ser
toda uma instrumentação escolar que possibilita aquele ritmo” (OKAPI, 2011, p.
23). Desafiar a língua e os sentidos fáceis transmitidos por um conforto
discursivo poético, buscas inquietas da precisão da imprecisão. Segue “Caligrama”:
O recurso ao caligrama para mostrar a insuficiência
perceptiva de um não-dizer e apresentar o desarranjo das vagas que encerram o
poema, o leitor à deriva, aberto para a expansão dos seus sentidos. Tal como o
enigmático título de seu livro, os poemas que compõem este caderno navegam por
um território indefinido, híbrido na tentativa incessante de experimentar a
linguagem, dialogando com as técnicas de vanguarda das artes plásticas e artes
visuais os títulos de seus poemas são instigantes, compostos por fichas
técnicas como obras de arte em uma exposição, tais como “Figuração do
homem-cão, técnica mista, 7 x 5 cm”,
“Aguarelas d’azul sobre o espaço, 4 x 5 cm”, “Dança, colagrafia sobre
cartolina, 5 x 3 cm”, “Instalação da voz (pormenor), mínima dimensão, 1998” e
“Abstracto de palavras sobre papel, 4 x 7 cm”.
Valendo-se da ironia, o poeta reforça o quanto são difíceis
as delimitações das fronteiras da arte contemporânea, sinalizando o fazer
poético para diferentes espaços sensoriais, para isso, muitas vezes
radicalizando na síntese, suprimindo a palavra, partindo para a abstração como
em “Colagem, grafemas sobre o cartão, 4 x 3 cm”:
Trata-se de um processo de abstração que se apresenta
agônico diante da ruptura que se pretende, da partida da força sacralizante,
normativa e de subserviência da língua, por isso o caminho do fragmento, rumo
incontornável para a abstração, poesia que não é mais palavra nem sintaxe, apenas
fonema, múltiplos fonemas, e por isso o prefixo “ma”[6] na
palavra “fonema”, formando o neologismo “mafonematográfico”, também explorando
a experiência híbrida e ágil com as palavras. Poesia solta no espaço do papel
navegando com a ausência de sentido verbal. Neste poema, talvez, a chave para
compreensão neste exercício de poesia híbrida de “Mafonematográfico também
círculo abstracto”.
Ronald Augusto percorre um processo talvez ainda mais radical
de desenvolvimento de uma poesia não-verbal, vasculhando os extremos da síntese
e demonstrando pleno conhecimento do seu ofício ao mesclar suas experimentações
com incontáveis referenciais das culturas afro-brasileiras, tanto no campo
linguístico quanto da religiosidade. Tais códigos rasuram a linguagem
tradicional da literatura brasileira, impactando o leitor desavisado, ainda
mais que a presença negra na poesia de Augusto não é explícita para os que não são
iniciados nesses códigos com o uso de palavras de origens africanas, das etnias
que foram retiradas à força da África e aqui reconfiguraram seus falares,
subvertendo e enriquecendo a língua portuguesa com esses outros vocábulos.
Importante destacarmos as considerações da intelectual
e professora negra norte-americana bell hooks acerca do caráter dominador e
opressor da língua, ainda que ela utilize como exemplo a língua inglesa, mas
por mencionar uma experiência negra em contexto diaspórico podemos pensar no
caso brasileiro, uma vez que uma das características das culturas negras em
diáspora é a sua transnacionalidade (HALL, 2011; GILROY, 2001). hooks (2013) é
bastante feliz ao afirmar que a língua padrão esconde os ruídos da matança e da
conquista, fato comum no continente americano para os índios e para a população
negra escravizada que foi retirada à força do continente africano. hooks
considera que não é a língua que a machuca, mas o seu uso pelos opressores,
pelo poder, que a limita e define numa forma de envergonhar, humilhar e
colonizar. Para ela, a língua utilizada por negras e negros é uma contralíngua
a partir do momento que passaram a utilizar uma fala quebrada, fragmentada, despedaçada,
passando a ser uma forma de resistência, reinventando a língua para além das
fronteiras da dominação com o uso incorreto e na colocação incorreta das
palavras nas frases, fazendo do uso da língua um local de rebelião e
resistência.
Nesse sentido, essencial para nossa análise as
considerações da crítica literária Prisca Agustoni (2010) acerca da poesia não-verbal
de Ronald Augusto, uma vez que seus poemas se tornam imagens de extrema estilização,
pois codificam signos das religiosidades afro-brasileiras, característica que
revela o profundo conhecimento do poeta neste campo. Dentre os poemas de Ronald,
alguns são dedicados aos orixás, caso de “Ogum”:
Importante destacar que para análise desses poemas,
Agustoni (2010) necessitou conversar com o poeta para que lhe passasse
explicações, somente a partir daí que foi possível desenvolver seu pensamento
crítico. No caso do poema supracitado, este aparece sem título no livro “Cair
de Costas” e na sua primeira versão, em “Puya” (1987). Há no poema a supressão
total da letra, abstraindo-a, assim o poema transforma-se em ícone. Agustoni
recorre ao crítico literário Cândido Rolim (2012) que já havia afirmado o caráter
radical de síntese na poética de Ronald, alcançando a sua extremidade neste
poema “Ogum”, que a faz considerar que o poema passa do poema-verbo para o
poema-escultura, ainda que preso à bidimensionalidade da folha de papel. A
percepção do poema se dá com as referências ao ferro e aos instrumentos
utilizados pelos ferreiros, pois “Ogum é o orixá do ferro e da metalurgia, o
campo semântico relativo ao ferro e aos instrumentos forjados neste metal
remete às suas características” (AGUSTONI, 2010, p. 502). Diante disso, a referida
crítica considera o trabalho desenvolvido por Ronald com um nível de
experimentalismo e conceitualismo refinado, aguçado, que necessita do
reconhecimento por parte do leitor desses códigos que circulam pelo Atlântico
Negro. Agustoni frisa ainda que a especificidade da poesia de Ronald é
experimentar, ousar com a linguagem dentro das nossas tradições negras,
rasurando a experiência concreta brasileira focada nos ideogramas da cultura
chinesa.
Procuramos na brevidade deste artigo demonstrar que a
partir da percepção das literaturas negro-diaspóricas[7]
para os comparativos da literatura brasileira e das literaturas africanas de
língua portuguesa podem contribuir para a expansão do campo. Para esse intento,
é fundamental a abertura oferecida pelos estudos encruzilhados e a perspectiva
negra acompanhando as experimentações possíveis, oriundas de outras tendências
estéticas, que os poetas Ronald Augusto e Sangare Okapi podem fornecer para a
transformação ininterrupta e ilimitada com a linguagem. Poéticas com a sintaxe
escassa e a fragmentação rumo à abstração, que sugerem mais do que propriamente
se preocupam em dizer, transcendem o que se convencionou na literatura
negro-brasileira e na literatura moçambicana, e, navegando por áreas maiores, a
literatura brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. Sendo
assim, a poesia só tem a ganhar com a precisão da imprecisão desses dois poetas
que percorrem os interstícios da linguagem.
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SOUZA, Ricardo Silva Ramos de. Afirmando outras versões da História... memória e identidade nas
poéticas de Éle Semog e José Luis Hopffer Almada. Programa de Pós-graduação
em Relações Étnico-Raciais (Dissertação de Mestrado), Centro Federal de
Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, 2014.
[1] Nome de
Ricardo Silva Ramos de Souza (1974). Mestre em Relações Étnico-Raciais
(CEFET/RJ). Com José Henrique de Freitas Santos organizou “Afro-Rizomas na
Diáspora Negra: as literaturas africanas na encruzilhada brasileira” (Kitabu
Editora, 2013). Autor do blog Riso – sonhos não envelhecem - .
E-mail: risoatelie@gmail.com
[2]
Com Guimarães (2012) fizemos levantamento estatístico comprovando a
existência de um cânone luso-descendente para as literaturas africanas de
língua portuguesa publicadas pelo mercado editorial brasileiro. De 115 obras
lançadas de janeiro/2003 a setembro/2012, 81 são dos angolanos Pepetela, José
Eduardo Agualusa, Ondjaki, Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carvalho; e do
moçambicano Mia Couto.
[3]
Inspirando-se na descentralização proposta pelo conceito de rizoma de Deleuze e
Guatarri, os afrorrizomas “constituem-se como uma reversão da perspectiva que
toma exclusivamente para a emergência das literaturas no Brasil e nos países
africanos de língua portuguesa, reconfigurando, dessa forma, as relações em
jogo. O termo afro, neste contexto, é ressignificado pela perspectiva da
diáspora, que, de acordo com Hall (2003) e Gilroy (2001), não se refere apenas
à dispersão dos povos africanos pelo mundo, mas, principalmente, à construção
de um novo espaço simbólico, no qual a reversão da condição subalterna imposta
pela escravização africana é realizada continuamente em campos como a música, a
literatura e a produção cultural. Desta forma, assim como a literatura afro-brasileira
soergue-se historicamente no Brasil afirmando uma estética negra em diálogo com
a África, a partir do tensionamento de um cânone instituído que invisibiliza as
produções e representações negras, as literaturas africanas de língua
portuguesa emergem também como escritas de si para além de uma circunscrição
geopolítica, através de uma tessitura que opera entre tradições e modernidades,
entre o local e o global, sem furtar-se a avaliar os projetos nacionais
reservados aos países africanos” (SANTOS, 2013, p. 54-55).
[4]
Transnegressão é neologismo de Arnaldo
Xavier (1948-2004) incluído no livro de poesia “LudLud”. Segundo Ronald
Augusto: “O compósito verbal transnegressão,
cunhado por ele, tenta dar conta – através da justaposição dos vocábulos (negro + transgressão), no estilo da montagem cinematográfica – de uma
proposta estética interessada em lesar tanto as ideias feitas que orientam
nossas filosofias de vida, quanto à imagem de um cânone totalizante,
‘universal’, vantajoso (para quem?) a ponto de ser aplicado em qualquer
tempo-espaço” (AUGUSTO, 2010, p. 434, grifos do autor).
[5] Podemos
citar, dentre outros, os poetas Salgado Maranhão, Edimilson de Almeida Pereira,
Ricardo Aleixo, Lívia Natália, Conceição Evaristo e Cuti.
[6] Prefixo
“ma” em ronga, língua nacional de Moçambique, indicativo de plural. Informação
passada pelo próprio Sangare Okapi quando esteve conosco, no Rio de Janeiro, em
maio de 2012.
[7]
Consideramos como literaturas negro-diaspóricas (RISO, 2014) as
diferentes literaturas negras que trazem marcas da afirmação, inclusão e
valorização do ser negro e da sua origem africana, do vínculo com as religiões
de matrizes africanas, o uso da oralidade e de expressões africanas no texto
literário, a revisão crítica da história, a denúncia incansável da
discriminação racial em seus países, o olhar solidário e consciente para os
problemas dos negros na diáspora e em África em diálogos incessantes, trocas
ininterruptas com os textos de negras e negros desses países. As literaturas
negro-diaspóricas encontram seus referenciais nos primeiros textos literários
de negros durante a colonização nas Américas, na oralitura que o cânone
ocidental desconsidera, tais como os cânticos dos escravizados, como nas spirituals songs e os orikis, assim como o grafite e o rap dos
nossos dias; essas literaturas inspiram-se nos movimentos culturais das décadas
de 1920-30, como o Harlem Renaissance, a Negritude, o Negrismo cubano, o
Indigenismo Haitiano; no reggae jamaicano e demais movimentos negros na
diáspora que, desde então, se relacionam de diferentes maneiras e intensidades.
Dessa maneira, encontramos recursos estilísticos, estético-formais e temáticas
que se assemelham, tendo na ininterrupta inventividade com a linguagem a forma
para rasurar os cânones estabelecidos. As literaturas negro-diaspóricas buscam
o diálogo enegrecido com propostas que descolonizam o pensamento, questionem e
promovam a ruptura com a colonialidade do saber e do poder, que ampliem,
rasurem e desierarquizem o cânone brancocêntrico homogeneizante e excludente,
tais como a escrevivência (Conceição Evaristo), a filosofia da
afroperspectividade (Renato Noguera), os estudos encruzilhados e os
afrorrizomas (Henrique Freitas). (SOUZA, 2014, p. 102-103)
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