Ronald
Augusto[1]
A satisfação de escrever a
apresentação para um livro que é do agrado do prefaciador muitas vezes é
acompanhada da suspeição de terceiros. Com efeito, tendo em vista a presente
obra, alguns dirão, por exemplo, que sou suspeito ou estou implicado nas
análises da poesia de Eliane Marques, porque já há algum tempo venho
acompanhando os desdobramentos construtivos de E se alguém o pano, conjunto que agora se oferece ao leitor. Ao
longo desse percurso estabeleci um raro diálogo com a poeta e suas específicas
propostas textuais. Assim, é por essa razão que, a contrapelo dos eventuais
invejosos, me sinto não só mais do que à vontade para cumprir a tarefa, mas – e
o que é melhor – creio mesmo que tenho o direito de fazê-lo.
Não se trata de lançar mão da
prerrogativa do elogio que o texto introdutório pode exercer; não. O que
pretendo é levar a termo, o quanto possível, uma ideia do poeta W. H. Auden
segundo a qual o melhor leitor do autor inédito (que é o caso, ao menos no que
diz respeito ao livro individual) ou do autor iniciante (que não é o caso, pois
a poeta se mostra segura em seu primeiro movimento), seria aquele companheiro
de viagem literária com quem mantém o comércio mais íntimo da amizade, que
procede a uma leitura desinteressada, pois deseja o melhor tanto para o amigo,
quanto para o poema que este lhe faculta com vistas a um comentário. O norte da
apresentação é antes a admiração e o afeto necessários do que a indecorosa
cumplicidade. Passemos, então, à apresentação propriamente dita, mas sem deixar
de observar o seguinte. A apresentação não abarca todas as dimensões de E se alguém o pano; lacunas são
constitutivas de qualquer leitura. Portanto, outras explorações a
propósito da poética de Eliane Marques podem e devem ser levadas até as últimas
consequências por parte do leitor, e é justamente em respeito à sua liberdade
de interpretação e ao espaço que se deve dispor em um prefácio para dizer algo
sobre o livro que seja mais do que protocolar elogio, que tentarei sugerir o
suficiente ao seu apetite com a convicção de que esse mesmo leitor cumprirá sua
parte no jogo estético colaborativo.
De imediato é preciso dizer que E se alguém o pano enfeixa poemas reveladores
de uma personalidade criativa que não pretende ficar presa à subalternidade. Há
aqui o desejo de desbordar moldes e modelos. Começo por essa afirmação pelo
fato de Eliane ser uma poeta que, ao mesmo tempo em que se deixa apreender como
negra, não perde de vista que esse dado não é substancial para a fruição de sua
obra de estreia, contudo isso não significa que a condição de escritora negra
seja irrelevante, significa apenas que é secundária no que diz respeito às determinações
inerentes ao discurso poético. Entretanto, a recusa à subalternidade, referida
linhas acima, assinalável na poesia de Eliane Marques, é a materialização
estética – uma das muitas estratégias, pode-se dizer – daquilo que o poeta
Arnaldo Xavier chamou de “manual de sobrevivência do negro no Brasil”. O salto
criativo por sobre a fenomenologia da resignação tendo como pano de fundo o
preconceito naturalizado.
Os poemas de E se alguém o pano almejam àquela condição de cacto, de coisa
áspera e intratável, e servem à maravilha como transposições verbais da célebre
metáfora de Manuel Bandeira. Eliane sabe muito bem que seus poemas devem ser três
vezes melhores do que qualquer poema branco escrito por seus iguais desiguais que
não se ressentem de sua branquitude. Essa, por enquanto, é a regra do jogo. Do
contrário restaria resignar-se murmurando a máxima de que o “importante é fazer
parte do coletivo”, assumindo o posto menos visível, menos proeminente. Enfim, os
poemas de Eliane Marques são ambiciosos. Em seus poemas há entre outras coisas:
variedade de ritmos, palavras-montagem, étimos de extração de poéticas panafricanas,
coragem de usar uma dicção antinaturalista, um movimento contrário à brevidade enquanto
padrão médio, o aproveitamento da música da prosa, o entendimento de que o
ritmo se conquista pela reiteração de elementos materiais da linguagem. E, algo
que considero fundamental em qualquer artista: Eliane dissimula uma raiva contida,
bem aplicada, isto é, um tipo de disposição textual capaz de conferir à forma
um enviesamento mais cortante, impiedoso: o estilo da revanche.
Ossuda alta a cabeça guirlanda.
A boca um pote de terra.
Ainda com anjos maometanos e outras
bobagens.
Atrevida. Desconhece dinheiro.
Pelo nome “justina” que talvez ainda
atenda.
Além disso, sua linguagem incorpora o aproveitamento
de registros históricos, recriações e/ou paráfrases de relatos, notícias, anúncios
ao modo “pede-se publicar...”. E se alguém o pano
resulta mestiço devido aos discursos combinados, pois, a par desses ecos de
documentos de verdades contingentes, seu escopo discursivo revela irrupções
analógicas, metáforas, cortes metonímicos e mudanças de tom, fazendo o
imagético e o sintático se projetarem sobre o mero relato de uma vida
estilhaçada, espécie de vida-sinédoque de personae
negras hesitantes entre a fuga e o enfrentamento ao racismo e aos afetos que
lhe são perversamente correlatos. Mas a hibridez dos poemas e, de resto, do
conjunto, está dentro do controle. Eliane lança para um nível mais complexo a
ideia consagrada de que as tradições das diásporas africanas se resolvem em
sincretismo edulcorado, seus poemas mostram o quanto de dor e de interdições se
pode vislumbrar sob essa mescla cultural. Cada poema se integra a um vasto
ideograma de memórias particulares no centro desse processo diaspórico.
Suspeita-se que sobre cada um dos ombros
sacos de juta cheios de arroz branco suspeita-se que sobre cada um dos ombros
tigela com água e pano de prato e a cristaleira que com tanta diligência e o
serviço de chá com margaridas nas bordas suspeita-se que entre os dez dedos um
caco de cerâmica portuguesa suspeita-se.
[...]
Seu senhor é de beira.
Seu senhor é de tribeira.
Manda assim a quem apreendê-la que faça
sua entrega.
A promessa é da lei para quem a acoutar.
A promessa é da boa paga para quem a
devolver.
Eliane Marques enfrenta com
sucesso o ruído da redundância, aliás, seus experimentos tendo em vista esse
quesito comportam um mérito: o risco da deriva dos sentidos exige ao leitor uma
atenção estritamente colaborativa e serve de convite à fruição de outro modelo
de sensibilidade. Na redundância está implicada, em certa medida, um fracasso
de comunicação, mas a intencionalidade com que a poeta dispõe de anáforas e de reiterações
instaura um lance de estranhamento na leitura. Aqui está em jogo um desvio da norma,
o leitor-fruidor fica sem uma referência estável para a decodificação. Muitos
poemas de E se alguém o pano se
ordenam em torno de uma colisão de elementos do discurso, acentuam as tensões
de forma-fundo do poema e propõem ao leitor uma sempre desordem de recepção. O aparente
enigma é uma porta que se abre ao desejo de linguagem e de significação do
fruidor-leitor, a par de um desejo de forma significante. O resultado é extremamente
válido no sentido em que favorece a ultrapassagem dos limites da convenção poética
tradicional ou disso que parece ser o “poeticamente correto” dos nossos dias. Cada
poema dá prosseguimento à tensão entre o linear (o narrativo) e a ruptura (o
corte telegráfico). A prosa
começa a ceder a vez ao verso, ou a um simulacro de verso, no sentido em que o
poema feito hoje deve ser também crítico e investigativo em relação à crise do ou de verso na tradição contemporânea.
Ainda a propósito da boa
interação com a “linha da prosa” que se pode observar em E se alguém o pano,
cumpre anotar que a poeta projeta o seu verso livre com aquele largo andamento
original (que evoca tanto Whitman, quanto Pound), mas que também é demorado e
feito de insinuantes interrupções. A cadência se transfigura em imagens e metáforas
elípticas, tão eficientes quanto ágeis. Alguns cortes, quebrando enunciados e
compondo uma narrativa por justaposição, alcançam dar mais verso à linha, mais
música (sintaxe pura) ao entrecho, e com isso o livro de Eliane Marques toca a
margem, a linha de fronteira da hibridez entre o poema e a prosa. Algo do
canto, algo do conto.
Muito escura a pele dos joelhos ainda
mais escura do que a do rosto cabeça virgulada fronteada pelo limado dos dentes
chapéu de feltro recebido da senhora garganta feito o cadeado de uma cela no
seu ofício de impedir o trânsito dos verbos
tem o mau costume do óleo nas panelas
tem um deus com sotaque britânico
o seu cheiro é familiar sua língua chata
assim como o clip clop clip clop dos pés
nas poças d’ água
Por fim, pode-se notar em quase
todos os poemas de E se alguém o pano
a mobilização de uma série de analogias fônicas. Por exemplo, efeitos
aliterantes como pregação-prêmios-prémolares, descasque-quinaria-cântaros; reiterações fortemente musicais como “o
pan pan pan dos martelos”, “até que o tric tric dos cascos...”; em outras
palavras, tudo isso indica trabalho lúcido e desanuviado sobre a linguagem,
cujo resultado induz o leitor a perceber tais equações verbais e quando não as
percebe faz com que seja seduzido por elas. Essa é uma das maneiras mais
eficientes de conferir relevância ao trabalho com a função estética da
linguagem: oferecer essas informações (que geram outros modelos de
sensibilidade) ao leitor-ouvinte sem que ele necessariamente esteja consciente
delas. Desse modo, E se alguém o pano
enfeixa um conjunto de poemas que vão interessar tanto ao especialista, quanto
ao leitor em geral interessado em poesia. E isso não é
coisa simples. Poucos poetas logram tal resultado, ainda mais em se tratando de
um percurso poético que se inaugura.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de,
entre outros, Confissões Aplicadas
(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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