Cada poema inaugura e exaure uma chance de linguagem. Às vezes nos reportamos às coisas ligadas ao processo de composição de um texto em termos de que tudo não passa de um maior ou menor acabamento. Nisto depositamos critérios valorativos. Entretanto, no que diz respeito à arte em geral ou, mais precisamente, no que compete à poesia e à sua signagem – e é o que nos interessa aqui – o melhor talvez fosse pensar na perspectiva de um permanente acabar-começar. Em alguma medida a metáfora sísifica também viria a calhar, mas ela admite acepções um pouco exasperantes. Me agrada, antes, imaginar a poesia como um jubiloso movimento de abandono daquele terreno há pouco conquistado.
Passagens e fragmentos. Devir, mas sem laivos de bom-mocismo esperançoso. Um lance de dados mallarmaico, por assim dizer. Octavio Paz escreve em algum lugar que o poema, esse ser de linguagem, é um espelho que se rompe em mil fragmentos. E esses fragmentos jamais se unirão. O mundo figurado no poema é, portanto, um mundo sempre equívoco. Não temos a imagem total do que quer que seja. Ambíguos e parciais, todos: emissor, mensagem e receptor.
É por essas e outras que Guellwaar Adún acerta quando dá o título de Desinteiro ao seu livro de estreia. O conjunto alude a uma força centrífuga, Desinteiro se descentra enquanto estilhaça a volátil área semântica demarcada em cada poema. Sua música barroquizante, exorbitante, descanta e diz:
Peguei um pé de cabra,
a orelha de um livro velho,
dois dedos de prosa antiga
e asas.
a orelha de um livro velho,
dois dedos de prosa antiga
e asas.
Por outro lado, conjugado a esses índices de barroco, o ori de Guellwaar Adún tem parte com Exu-Bará; trata-se de um poeta exusíaco. Desinteiro, feito despacho e monumento (não documento) a Exu, divindade que preside as zonas de fronteira e as encruzilhadas: rubros objetos de linguagem a espera de um traslado. Poemas-entidades do trânsito, da troca, das transações semióticas. Seu desígnio:
estrangular a letra estranha,
despachar cada palavra carregada
reencantar o que se diz, o que se cala.
despachar cada palavra carregada
reencantar o que se diz, o que se cala.
Guellwaar Adún, como todo poeta de verdade e que foge corajosamente tanto à personalidade, quanto à emoção, é, a cada poema, ele mesmo e outros eus. Uma aventura no fragmentário que se dispersa, que se presta à colagem: discursos constituídos de sobras, aparas, restos. Esses signos (sejam os de matriz africana, sejam os de tradição europeia, devorados com inflexão arnaldiana) são ressignificados em uma nova perspectiva de leitura que, em fim de contas, é a própria colagem enquanto chance de linguagem. Guellwaar Adún, como um poeta do fragmento, se entrega à deriva das próprias imaginações num apetite quase antropofágico (“ori or not ori”, Arnaldo Xavier dixit) no que toca à maneira de compor o poema, ou seja, no textodesinteiro importa mais o vazio, a lacuna, o intervalo; em última palavra, há o investimento na relação equívoca ou aberta entre as partes do poema. O qualificativo “equívoco” tem, para mim, acepções virtuosas. A propósito – e se a memória não me engana –, Augusto de Campos, pensando sobre as determinações específicas da poesia de invenção, criou a seguinte palavra-montagem: equivocábulo. Enfim, esse ideograma verbal é um eco da clássica noção poundiana segundo a qual a poesia permanece mais próxima das artes visuais e da música do que da literatura. Guellwaar Adún conhece a eloquência do impreciso, do ficto, por onde se esgueira.
Cortes integram a paixão pelos meneios
loquaz, funesto, sujo afã tão desinteiro
falsas feridas no fundo do olho esquerdo
sorte das léguas dos vencidos escudeiros
Frantz palavras e sotaques, fanoneio
portal do inverno, me recolho e me esgueiro.
loquaz, funesto, sujo afã tão desinteiro
falsas feridas no fundo do olho esquerdo
sorte das léguas dos vencidos escudeiros
Frantz palavras e sotaques, fanoneio
portal do inverno, me recolho e me esgueiro.
Desinteiro cria envolvimento por meio do intervalo e da lacuna, ao mesmo tempo em que embaralha a conexão meramente denotativa ou a fidelidade ao significado. O leitor aspira à condição de criador nesse lance interpretativo, nessa deriva semântica onde ele deve suprir todas as conexões. Essa participação ativa do fruidor só se efetiva radicalmente em obras onde predominam formas não lineares e não discursivas. E Desinteiro, de Guellwaar Adún, dá mostras de ser um importante experimento textual que se vincula a essa espécie de antitradição.
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