Ronald
Augusto[1]
A poesia de Liana Marques habita a
experiência, sim. Ainda quando sua voz poética se lance a habitar as câmaras
secretas do poema e seus dilemas construtivos, ela o faz sempre de janelas
abertas, ou seja, transportando para o centro compacto desse objeto verbal a
instabilidade do seu mundo claro e ensolarado. A poeta carrega sua linguagem com
aquela matéria incandescente de que fala a epígrafe de João Cabral, a saber, a
matéria-vida explosiva que “não foi feita para ser guardada num cofre”. E
talvez seja mesmo por essa curiosa razão que os poemas de Liana Marques
conseguem ser indiretos e sugestivos e ao mesmo tempo jamais se revelem fechados
a sete chaves.
Enquanto
habito reúne uma sequência de imagens e processos discursivos
evocativos tanto de um cotidiano fortemente transfigurado, como de um espaço de
memórias submetido à decupagem estética. Liana Marques se dobra sobre a
experiência do real na escolha demorada dos melhores instantâneos verbais com
que efetiva seu esforço tradutório. Cada poema é uma chance de linguagem que se
inaugura e um dispositivo sígnico que se exaure. É preciso reiterar o jogo,
reinventar a emoção no recorte do ritmo.
decerto
um texto exaurido, retido no sentimento
detém
alguma chance face àquele que surtiu
rumor
de papel seco na direção do cesto
o
décimo movimento em doze avos do tempo
depois
de puxado terço uma centena de vezes
As
senhas da memória de Liana Marques, seu relicário remexido até o limite do
destrato ou até alcançar o luxo da deriva, repercutem no sincopado de poemas
breves e quase narrativos. Liana escreve poemas que não desprezam a dimensão
oral ou sonora; sua poesia pede licença para cantar e contar algo a uma audiência
com indispensável apetite musical. Entretanto, o leitor-fruidor de Enquanto habito deve estar preparado não
só para a comunicação compartilhada, essa “superfície onde a clareza prevalece”,
mas, sobretudo, também disposto a aceitar o convite para excogitar, por
exemplo:
a
busca do veio
qualquer
que seja
um
naco líquido
no
sumo, a envergadura do corpo
fluidez
precipitada no vácuo
hiato
no papel feito barco
a
considerar o rumo
Liana
Marques é “fluida e aprendiz de coisas correntes”. Com efeito, a língua
corrente é matéria que diz respeito à poesia de Enquanto habito. Resistindo à tendência do afrouxamento da língua
que é praticada em todos os instantes, Liana se vale da vivacidade criativa e
do frescor que constituem – ou ao menos deveriam constituir – os falares
cotidianos. Muitos poemas se servem esteticamente de traços e inflexões,
inclusive regionais, da língua transeunte de modo a romper com a obediência à
ideia de “termo médio” e que reduz a fala à sedimentação imobilizante devido ao
uso repetitivo. Essa saborosa instabilidade de linguagem, levada a efeito por
Liana Marques em sua poesia, torna-se crítica, ao fim e ao cabo, tanto em
relação à fala cotidiana empobrecida de significados, quanto à rigidez
aristocrática com que alguns poetas passadistas visam se perpetuar. Por isso é sempre salutar
deparar entre as capas de Enquanto habito
arranjos verbais tais como: “enquanto
o cão afocinha o longe”; “em tempos que vivo no mundo da lua”; “as meninas como
mariposas/faziam voltas naquela barriga”; “independente do tempo assopro”; “arremete
pro vão o que quem sabe fosse”.
Liana é uma poeta com uma singularidade. Há
algo em sua poesia que só se verifica na prosa. Ou em quem escreve prosa. Mas
não é algo material, antes de qualquer coisa é algo espiritual; uma espécie de feeling. À semelhança de um bom
prosador, Liana cria seus ritmos e cadências sabendo com quem está falando.
Estou usando uma metáfora para sugerir que sua poesia tem o leitor como o centro
de seu interesse. E esse é um dos predicados do prosador. Desde o século 19,
como pondera Walter Benjamin, o tempo vem provando que o prosador tem uma noção
mais ou menos clara da clientela a que serve, ao contrário do poeta que, no se
dispor a apresentar sua identidade como “a voz” por detrás da linguagem, mesmo
assim costuma apreciar mais o solilóquio do que qualquer outra coisa. Ou seja,
o leitor lhe parece uma entidade excessiva ou um mal necessário com o qual ele
tem de se haver muito a contragosto já que, à revelia da sua vontade, o texto
só se completa no instante da leitura.
Assim sendo, para essa figura algo caricata do
poeta, pouco importa quem é e como reage esse leitor frente aos seus estímulos.
Em contrapartida, Liana parece ser uma poeta que não despreza o leitor como
secundário, pois do seu ponto de vista o que está em jogo é a conjunção
necessária do sucesso estético e com os aspectos comunicativo e referencial do
poema. O
leitor, portanto, é o interlocutor, o personagem implícito do percurso textual
de Enquanto habito, pois a poeta,
nesse intercâmbio entre vontade e desejo de linguagem, lhe estende a mão e diz:
te
repasso
nas
páginas em branco
da
esfera criativa
esboço
rascunhos
traço
fino
véu
de acabamento
te
vejo pronta
te
apresento
o
prazer é meu
Mas o prazer é também do leitor que se
desanuvia deambulando pela cenografia de emoções e memórias, justapostas e
materializadas por Liana Marques. Os desejos e sentimentos escapam à sua
personalidade indo parar nos lugares incomuns do pensamento desse leitor que é
muitos e ao mesmo tempo nenhum. Aquilo que, à primeira vista, parece pertencer
apenas à pessoa civil da poeta Liana Marques, os biografemas irredutíveis aos
poemas e que perfazem o conjunto de Enquanto
habito, subitamente desabrocham familiares à fruição do leitor,
transferindo o que antes dizia respeito apenas ao invisível (ou ao impreciso) à
textura mesma do aparente, isto é, o poema enquanto matéria verbal viva e
proliferante. E junto com a poeta chegamos a um lugar de onde ninguém leva
cheiro de terra, nem “novembros em cachopas na janela/ nem os frutos de algum
esforço”, mas tão só “a leveza das memórias por serem impressas”.
Por fim, agora que o leitor se acha na antessala de Enquanto habito que
ele não se demore muito a cismar; que ele habite
intensamente esse recinto vertiginoso. Liana Marques sabe que, diante da provocante
imprecisão do poema, o fruidor anseia para que se abram as portas de modo a que
seja introduzido nesse universo desconhecido. Entretanto, a poeta também concebe
a leitura como uma forma de descerramento irônico dessas portas que estão
sempre maliciosamente abertas.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blogspot.com e
escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/
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