Escritores negros na 62ª Feira
do Livro de Porto Alegre: quantos e quais?
Ronald
Augusto[1]
No dia 07 de julho postei
em minha página do facebook a
seguinte indagação: quantos e quais escritores negros farão parte da 62ª Feira
do Livro de Porto Alegre? Como é usual acontecer nessas ocasiões, alguém
replicou: “mas escritor tem cor? ”. Ao que eu respondi, de pronto: “escritor
tem cor, sexo, cpf e rg”. Desgraçadamente, concepções como essa, que não só eu
defendo, mas também muitos outros, ainda provocam constrangimentos. Entretanto,
o problema não é nosso se uma parcela de leitores e fruidores segue depositando
confiança na crença anacrônica de uma “arte pura”.
Recentemente tivemos a
chance de testemunhar uma discussão muito importante a respeito da invisibilidade
dos escritores negros relativamente às práticas seletivas de prestigiamento e
de indiferença vigentes no sistema e no mercado literários. A esse propósito, evoco
aqui a polêmica causada pela – para dizer o mínimo – incompetência da curadoria
da Flip que em uma edição tida e havida como inovadora, porque dedicada à
produção literária das mulheres, não foi capaz de apresentar uma escritora
negra sequer para ser integrada ao evento. Dezessete escritoras brancas
convidadas. Nenhuma negra. Eu posso ainda refrescar a memória do leitor com o
episódio da comitiva de escritores brasileiros enviada à Feira do Livro de Frankfurt de
2013, essa comitiva tinha apenas um ou dois escritores negros. Enfim, trata-se
de uma questão em relação à qual as curadorias de feiras e eventos literários
não podem mais se comportar com indiferença nem esconder seus critérios de
escolha atrás de desculpas convencionais e retardatárias.
No caso da Flip/2016, por
exemplo, o curador respondeu às críticas dizendo que tentou agendar as
participações de Elza Soares e Mano Brown, mas infelizmente, segundo ele, as
negociações não deram certo. Não tenho nada contra os dois artistas, pelo
contrário, mas circunscrever a presença negra na literatura contemporânea
apenas a esses nomes revela um total descaso a respeito da riqueza de vozes e
de linguagens da autoria negra brasileira que, pelo menos, já há quase 30 anos
vem despertando o interesse de leitores e pesquisadores em todas as partes. Por
outro lado, pelo perfil dos convidados negros desejados pela curadoria da Flip,
o teor da participação negra no evento não escaparia à rotina da mera animação
de festa, porque, em que pese a contundência estético-política de Elza e Brown,
ainda estaríamos presos à nossa proverbial dimensão rítmico-musical; espécie de
essência ou de lugar negro tolerado pela casa-grande.
Foi pensando exatamente
nessas imposturas e nesses enjoamentos preconceituosos que fiz a pergunta já
mencionada bem no início desse texto, repito-a: quantos e quais escritores negros
farão parte da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre? Insisto nela porque até
agora não obtive resposta completa da organização da Feira do Livro de Porto Alegre.
Na verdade, consegui uma reposta parcial. Sônia Zanchetta, responsável pela
Área Infantil e Juvenil da Feira do Livro de Porto Alegre, confirmou a
participação, este ano, dos escritores Heloísa Pires Lima, Rogério Andrade
Barbosa e Sérgio Vaz. Além disso, segundo a organizadora, o coletivo de poetas
negros Sopapo Poético apresentará um sarau no Teatro Carlos Urbim e o Coral do
Centro Ecumênico da Cultura Negra – Cecune, se apresentará no encerramento da
programação no mesmo teatro pelo 16º ano consecutivo.
Vamos por partes. Os três
escritores mencionados por Sônia Zanchetta, a saber, Heloísa Pires Lima, Sérgio
Vaz e Rogério Andrade Barbosa representam o vago perfil do escritor que
“trabalha na área da literatura afrobrasileira”, isto é, eles entram no rol dos
escritores negros devido à “temática”, o que é um erro conceitual. Esse erro
conceitual permite abrigar, inclusive, o virtual escritor branco de boa-vontade, só
que, neste caso, o problema da invisibilidade do escritor negro segue sendo
negado. Em outras palavras, esse branco sensível à cultura afrobrasileira pode
passar a noite inteira, a noite em claro, lendo e praticando literatura negra,
mas na manhã seguinte ainda vai acordar como um indivíduo branco. Quanto à
participação dos dois coletivos negros, entendo que serve como uma espécie de
atenuante, mas ainda acho pouco e segue na linha de “abrilhantar” o evento.
Concordo que é possível e estratégico ocupar esse espaço simbólico. Romper o
círculo endogâmico da branquitude usando não apenas essa expressividade por
meio da qual sempre somos lembrados, mas lançando mão também de nossa reflexão
sobre a literatura e seus modos de consagração e exclusão.
Com efeito, a presença da
autoria negra na Área Infantil e Juvenil da Feira do Livro de Porto Alegre é
tímida demais, para justificar essa conclusão basta mencionarmos que a Feira
tem duração de duas semanas, sua programação é intensa, cheia de debates,
lançamentos de livros, conversas com escritores, oficinas, etc. E diante de
tudo isso a coordenação da Área Infantil e Juvenil traz como contribuição apenas
dois ou três escritores negros e dois coletivos de cultura afro para entreter os
leitores e visitantes. É pouco.
Assim, ainda aguardo uma
reposta da coordenação da Área Adulta da Feira à questão: quantos e quais
escritores negros farão parte da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre? Meu
questionamento foi público. Suscitou uma série de manifestações, tanto de
escritores negros/brancos, como de leitores e interessados. Foi por essa razão,
aliás, por se tratar de um questionamento público, que Sônia Zanchetta, com
grande presteza, veio a público e apresentou uma resposta.
Espero que a Área Adulta da
62ª Feira do Livro de Porto Alegre nos apresente uma posição. Espero que esse
silêncio, esse intervalo sem resposta, quando rompido pela manifestação pública
da coordenação, não se revele uma decepção. Esperamos que seja uma resposta de
gente grande.
Post-scriptum: sugestões
Sugiro não só à
organização dessa 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, mas do mesmo modo às edições
vindouras do evento, bem como às demais feiras do interior do RS, que suas
curadorias: (a) ou passem por um processo de formação no sentido de
incorporarem à categoria do literário a representação das diversidades étnicas
e de gênero presentes nas poéticas contemporâneas; (b) ou constituam curadorias
que contenham representantes dessas diversidades, isto é, curadores com um
conhecimento mais aprofundado a respeito de seus respectivos campos
estético-literários.
Com relação à
incorporação da literatura negra ao cardápio das feiras de livro, eu poderia
sugerir os seguintes nomes: Mel Adún, Jorge Fróes, Henrique Freitas, Esmeralda
Ribeiro, Guellwaar Adún, Eliane Marques e Edimilson de Almeida Pereira.
Enquanto isso, para quem – ao invés de atrapalhar – quiser se informar mais sobre escritores negros,
visite o portal Literafro: http://150.164.100.248/literafro/
[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blogspot.com e
escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/
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