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Qual é a da Feira?


Escritores brancos na 62ª Feira do Livro de Porto Alegre: quantos e quais?

Ronald Augusto

Em vista dos últimos acontecimentos referentes ao debate que procurei estabelecer publicamente com a organização da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, e considerando que as respostas obtidas em relação à participação de escritores negros na edição de 2016 sugerem um suposto clima de tolerância e diversidade sempre respeitados pela Feira e que, portanto, o mais interessante (para a coordenação do evento) seria aguardar e aceitar de bom grado a visibilidade até aqui “conquistada” – visibilidade entre secundária e ecumênica, pois a Feira estaria comprometida tanto com a qualidade, quanto com a acolhida geral de escritores de todas as raças e etnias – em outras palavras, mesmo a limitada presença de escritores negros tanto nessa, bem como em programações anteriores, ao longo dos sessenta e poucos anos de existência da Feira do Livro, mesmo isso, do ponto de vista dos organizadores, seria melhor que nada. Assim sendo, em vista do que está dado, não há como não ficar cada vez mais pessimista com o quadro.

Considero que o objetivo de melhorar a Feira do Livro de Porto Alegre não é incompatível com a crítica objetiva. A mudança efetiva do que quer que seja pressupõe tanto confrontar, como congregar interesses. É necessário ser franco ao invés de leniente; debater publicamente ao invés de particularmente e mantendo o fair play o quanto possível.

A ideia de que a feira do Livro oferece ao visitante a qualidade de obras e lançamentos recentes que recebem destaque de crítica e de público indica que há um molde ou rito ao qual os autores devem se sujeitar, ou seja, está implícito um critério seletivo. Esse critério, o da qualidade, é pretensamente neutro e universal.  Mas os escritores, a pretexto de estarem cumprindo o processo natural de reconhecimento, na verdade se encontram presos às regras de eficiência e competência exigidas pelo sistema literário que, como costumo dizer, se configura em representação especular, embora com suas particularidades, dos processos sociais, econômicos e políticos, abrigados sob a normatividade leviana do livre mercado. Normatividade que produz uma série de imposturas e desigualdades. A retórica dos responsáveis pela Feira do Livro de Porto Alegre, ao apresentar o evento como uma espécie de sinédoque da autonomia da literatura – cujas ações de acolhimento à tópica da “negritude” (enquanto clichê) parecem acontecer sem sombra de conflito –, tenta através desse expediente despolitizar o significado crítico das questões estéticas e éticas relacionadas à representação da vertente negra na literatura brasileira.

O discurso da organização da Feira passa a impressão de que as condições para o aparecimento ou participação dos escritores negros estão garantidas e são suficientes, inclusive porque, tanto a coordenação da Área Infantil e Juvenil, como a da Área Adulta listam nomes de uns poucos escritores negros e atividades de cultura afrobrasileira com a intenção de mostrar que meu questionamento talvez não tenha mais sentido, já que, ao que parece, o negro vem sendo integrado às atividades da Feira há muito tempo.

Reconheço que essa participação acontece, mas ela está longe de ser satisfatória. Não estou deprimindo o esforço da Feira do Livro, apenas exijo mais, afinal de contas, já que, a julgar pelas manifestações das coordenações, se nossa contribuição é tão louvada, tão especial e extraordinária, por que, em contrapartida, se materializa de maneira tão diluída, tão fragmentada e acessória? Além do mais, se diluirmos essa participação ao longo desses sessenta e tantos anos, veremos então que ela é insignificante. O discurso da Feira também tenta se comprometer com a regra de que a todos deve ser garantido o seu espaço; ninguém deve ser privilegiado ou especialmente apoiado, enfim, a Feira pretende indistintamente contar com bons escritores negros, brancos, nórdicos, índios. Mas a Feira, na pretensão de ser justa com todos, acaba sendo injusta com alguns, porque os escritores são diferentes entre si e, hoje, felizmente, não são oriundos de uma mesma realidade social. Isto é, essas origens distintas aos poucos se refletem numa sequência de desrespeitos e prestigiamentos sociais distribuídos de forma assimétrica. A uns mais, a outros menos.

Na verdade, a Feira reforça a crença – verdadeiro item de uma fenomenologia da resignação – segundo a qual com o passar do tempo os escritores negros acabarão conquistando renome e prestígio porque irão se capacitar para isso. O típico aceno à retranca da meritocracia de fachada. Isto é, se os escritores negros quiserem e se dedicarem eles ocuparão – mais tarde do que cedo – o seu espaço. O racismo estrutural, então, não causaria nenhum óbice aos escritores negros; é como se o sistema literário fosse uma ilha inclusiva cercada de um mar de preconceito e exclusão por todos os lados.

O discurso da Feira é contraditório em sua tentativa de amenização dos conflitos, porque, de um lado, se pretende inclusivo (“todas as raças, cores e credos convivem em seu interior”), mas incluir supõe dar a vez a quem permanecia à margem; e, de outro lado, prossegue na defesa da retórica meritocrática (“o que vale é a qualidade e não a cor da pele”, só que “pequenas diferenças” são decisivas) tão logo venha alguém colocar em questão a efetiva presença de escritores negros em sua programação. No que concerne a essa situação devo rememorar brevemente um episódio vivido por mim: uma vez fui ministrar uma oficina de poesia para jovens de uma escola pública na Restinga (bairro afastado da região central da Porto Alegre). Os alunos eram todos negros. A oficina foi reveladora. No último dia uma menina me perguntou com alguma timidez se havia outros escritores como eu. Entendi o que ela queria dizer e me fiz de sonso, porém, com a intenção de trazer a questão à consciência de todos, perguntei “como assim ‘como eu’?”. Prontamente ela disse: “assim, negro como o senhor”. A menina me contou que até aquele momento nunca tinha conhecido um escritor negro, todos os escritores que haviam ido à sua escola eram brancos. Ela ficou contente quando eu lhe disse que havia muitos escritores negros. A “negritude” na página dos livros até pode ser necessária, mas não é suficiente. Machado de Assis, o maioral, tem de ser visto como um escritor negro e ponto final.

Achei importante narrar esse episódio porque o discurso das coordenações da Feira do Livro parece subestimar a força da “cor da pele” como espelho, como motor do processo de reconhecimento em que o sujeito se descobre na presença incontornável do outro, do igual. É preciso que o escritor negro apareça em contraste crítico com a naturalização da branquitude, porque se é razoável defender que a discussão não se resume simplesmente à cor da pele – uma vez que reconhecer-se como negro é um processo ético-político –, também é verdade que não podemos desprezar a representação simbólica do nosso corpo, da nossa visibilidade em situação de poder ou de protagonismo, estados significantes por meio dos quais podemos reagir à histórica depreciação com que tentaram (e tentam) nos submeter.

De qualquer sorte sigo sem esperança e sem temor no que diz respeito a uma mudança substancial das coisas. Talvez eu esteja sendo um tanto quanto dramático. É verdade que muitos sempre se mantiveram ou se mantêm reagindo frente ao racismo, e acho isso essencial. Por outro lado, não consigo esquecer que Kafka escreve, em algum lugar e frente a um vertiginoso pesadelo, que deve haver esperança, sim, mas não para nós. Entretanto, no pesadelo do qual não consigo escapar, esse “nós” não parece reunir uma mínima cota que seja de brancos.

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