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a poesia e a música popular




a poesia e a música popular[1]

Ronald Augusto[2]


“deus é o poeta, a música é de satanás” (machado de assis, dom casmurro, cap. ix).

a poesia é o mundo da linguagem (décio pignatari, registro mnemônico), a música popular (mp) é a linguagem do mundo.

no meu campo de referências, a mp se comporta como um sistema de signos diluidor daqueles elementos que no embate - ou na vivência - da cultura se estabelecem como constituintes pré-fabricados, quase ready-mades. os sinais que indicam a direção dessa cultura.

a massa comendo o fino biscoito fabricado. fábrica áfrica. o repertório da mp, mais reduzido, ou melhor, se autoprocessando ruma à kitchização, arrecada maior audiência. sem dúvida alguma que, se a poesia, de uma hora para outra, passasse a ser a moeda usual da fala - favella - cotidiana, seria um salve-se quem puder.

a poesia alimenta potencialmente a mp.

mas isso não quer dizer que a mp seja desprovida de um aparelho próprio de produção/ assimilação de signos, ou que ela, para avançar ou recuar, fique na dependência das violações radicais - ou, pior, da chancela - da poesia. não, escuro que não. o que ocorre é um pouco controverso. a mp é a língua por outro ângulo. seu sistema de signos e os estilemas com que opera, quadram no oral e no corporal. a mp tem mais da língua de todos os instantes do que da linguagem de rara audiência da poesia. por isso a mp é o primeiro círculo recriativo-recreativo da língua do diadia. o primeiro documentário sensível das movediças revoluções do étimo. à viva voz, isto é, na enunciação feirante, temos: gírias, slogans, clichês, provérbios, enfim, a fábula da fala.

o que a poesia oferta à mp de mais característico, além de algumas noções de estrutura e procedimento com o material, facilmente deglutidas e eliminadas pela urina (ou seja,  função poética: rimas, aliterações, paronomásias...), são, na verdade, aqueles símbolos poéticos mais tradicionais do idioma literário, tais como: aurora, flor, estrelas, luar, noite, amor, mulher, etc. porém, é evidente que esses símbolos estão grandemente intrometidos na vida realizável dos cantores populares. a mp não os conheceu, por certo, tão-só via literatura (a patient etherised upon a table, t. s. eliot, dixit), mas a abordagem desses símbolos na poesia-prosa da mp está contagiada, em boa medida, pelo jargão retórico-literário praticado pelos homens brancos, que se autoproclamam inventores ou precursores experimentados na manipulação de tais símbolos. felizmente, a mp é um discurso poético bastante malandro. ela aceita o que a poesia-terno-e-gravata lhe oferece, só que de uma forma diagonal e irreverente, isso devido ao seu léxico de desleixo-eixo mais ligado ao corpo (dança) e à oralidade (palavra voando). enquanto falamos, nosso corpo sempre diz-escreve coisas diferentes, melhor: recria de acordo com a sua peculiaridade expressiva. gestos, meneios no que a cuca, cuia côncava: nomes, nomes feios. visto que é a língua em outra velocidade, as informações que traduz a partir da poesia (língua igualmente, salvo que sob a persona de linguagem), só podem resultar - já que trabalhadas em função de sua sintaxe híbrida - em algo mais convidativo e propiciatório. uma tradução, uma crítica à poesia, seria esta uma das especificidades da mp.

não se pode lutar contra a diluição. diluição não significa apenas processo entrópico. pound foi um romântico. e um grande diluidor. meteu uma geladeira numa das elegias de propércio, o poeta latino.

a poesia propõe coisas inviáveis. a mp é toda vias e acessos. a mp não faz doce. quem permanece por muito tempo na linha, o trem termina pegando. o que vem, vem bem. se não, vejamos. uma, mais natural, outra, tendendo para o artifício. perto de uma o sucesso, no calcanhar da outra o fracasso. por outro lado, englobando essas diferenças autorizadas pelo específico projeto sígnico de cada, importa lembrar que ambas são, em suma, faces complementares da sobrevida da linguagem analógica ou poética exercendo seu papel de intransigência e de crítica contra o excludente pensamento linear.

um músico popular pergunta: o que quer, o que pode essa língua? um poeta afirma: a língua não importa, o que importa e exporta não é senão a linguagem.

o samba não é privilégio nem se aprende no colégio. aqui nasce uma outra disciplina: vontade analógica, interdisciplinar. paulo leminski: “poesia é algo como filatelia ou caça à raposa”, e, mais, a poesia corre o risco de se transformar num subproduto da indústria de diversões da casa-grande acadêmica. borges: “certas pessoas têm dificuldade em sentir a poesia, daí dedicam-se a ensiná-la”, siete noches.

a mp alimenta potencialmente a poesia.

dante para chegar à divina commedia devorou quase tudo e mais os cantores provençais. pound sinalizando com uma frase do poeta florentino: “uma canzone é uma composição de palavras postas em música”.

uma aproximação à ideia de beleza: adequação ao objetivo. esta “adequação” ou funcionalidade comunicativa, para pound, dependeria do maior ou nenhum contato da poesia com a música. fazer, pois, um poema como se fosse para ser cantado solucionaria, a princípio, encrencas como: o uso de palavras demasiadas ou sem crédito funcional, que só obscurecem o significado. a melodia (estrofação e metro) trabalharia então como uma sorte de condão concentrador. controle do acaso. tudo para manter a nitidez, a precisão, a eficiência da linguagem. e, naturalmente, para acabar de uma vez por todas com o discurso nebuloso dos literatos trapaceiros, discurso forjado para ocultar o pensamento. pound fez crítica via música testando experimentalmente as palavras de guido cavalcanti e françois villon em composições musicais.

de moy povre je vueil parler: j’en fus batu comme a ru toiles tout nu ja ne le quier celer. double ballade.

à parte. sua pele-pala encardida. batida por lavadeiras contra o rio de pedra. acordado, aquele negro no porão do desacorde não quer mais o escondido.

sete noites. borges, jorge luis: “quando lemos versos que são realmente bons e admiráveis, tendemos a lê-los em voz alta. um verso bom não pode ser lido em voz baixa - ou em silêncio. se isso for possível então o verso não vale a pena, pois um verso sempre exige sua pronúncia. o verso nos faz lembrar que antes de arte escrita foi uma arte oral: o verso nos lembra que inicialmente foi um canto.”

a música erudita não dista um isto da mp. um erudito chorão aqui, um lamartine dada acolá (josé lino grünewald dixit). o destino que a música erudita prepara para si é o da popularização. não tem jeito. signo translinguístico. música, cinema mudo.

quem samba sabe. a bossa não está em quem sobe, está em quem soba.

joão da baiana sabia uma penca de coisas. tinha os preceitos. música é linguagem, escritura ou caligrama corporal. joão da baiana está inscrito: “eu era carioca e venci meus irmãos que eram baianos. eu discutia com as minhas irmãs e dizia, ‘sou carioca e vou te escrever nas pontas dos pés’, fazia umas letras, uns passos, e elas ficavam malucas” (roberto moura in tia ciata e a pequena áfrica no rio de janeiro).

a mp a todo vapor, quebrando tudo: samba, rock, reggae, jongo e o que mais vier, opera por sinestesia. cinema. revista musical. cotton club.

por estar mais próxima da língua, a mp está sempre à disposição. é quase uma terra de ninguém. beira o domínio público.  a poesia se situa mais para os lados de uma waste land. muitas vezes o improviso, o pagode. quem tiver coragem que entre na roda e desamarre o ponto. todos podem cantar o poema sem dar a mínima ao poeta. a paródia (canto paralelo, haroldo de campos dixit) não estanca um instante sequer. toda a quizila a respeito da autoria do samba-maxixe “pelo telefone” de donga, ou seja lá de quem, reflete um certo desconhecimento a propósito do caráter macunaímico da mp.

diluição: destribalizar a informação.

críticos superciliosos denunciaram plágio em alguns poemas de gregório de matos. gregório é um poeta barroco. o barroco constitui um código bastante específico de fatura/fratura poética. a coesão do movimento barroco no que toca às suas figuras de linguagem, aos seus contrapontos paradoxais ou ao seu imagismo grosso-fino é exemplar. o idioma poético barroco avançava por mutirão. liam-se; havia um repertório comum. san juan de la cruz, sor juana inés de la cruz, góngora, gregório. o de matos, façamos justiça, também capitão do mato, era músico popular. tocava viola. um dos primeiros poetas brasileiros a se questionar sobre o (in)sucesso e a sucessão.

o chefe da polícia, o chefe da folia, o chefe dos sheroques, o general foch.

mp, música pop. jimi hendrix, itamar assunção, arrigo barnabé, titãs. sangue novo, signovo. a diluição elevada a uma outra potência. singing each morning out of each night” (cummings, e. e.). tudo acaba num disco. tudo acaba em samba. cantando a alvorada no advento da madrugada.

quanto às radicalizaçães da bossa nova e da tropicália, fico com o trocadilho paronomástico de macalé que, por sua vez, parece reverenciar, com este coleio relacional, augusto de campos (o vietcong concreto), quando diz: “a bossa nova é o luxo da tropicália”. a amarelinha oximoresca luxo-lixo, representa bem em cima do lance o que é o diálogo mixado entre alto repertório e baixo repertório no pf antropofágico da mp.

televisão é música pop. gatos siameses, gatos pardos, gato por lebre. um dia lá no morro, pobre de mim, queriam minha pele para tamborim.

mp: pelo seu plano sinestésico. o rádio é quente demais. a mp deve ser ouvida e televista como veículo de massa. meio por meio.

domingos caldas barbosa, poeta e compositor popular negro do período colonial, nas quadras comunicativas de um lundu que moteja panos e pratos de um triângulo amoroso, traduz estocasticamente o drama imaginário, todo comprimido na palavra “angústia”, pela domingueira, suculenta e, ao mesmo tempo, indigesta referência do vocábulo “angu”. diz assim: “amor comigo é tirano/ mostra-me um modo bem cru/ tem-me mexido as entranhas/ qu’estou todo feito angu”. xarapim tenha dó de mim, leia a minha autopsicografia. estrategicamente, o projeto diluidor só aceita a metafísica em termos de logopeia. relacionar os signos de uma maneira especial ao costume; no contexto em que o leitor-ouvinte espera ou está habituado a encontrá-los, dar-lhes uma feição ligeiramente deslocada e auto-reflexiva. fernando pessoa, jorge luis borges, paulinho da viola. angústia, angu. amor, humor. ele: pedir-lhe ciúmes; ela: sapatos e meias.

redundância: a áfrica é a fábrica. aniceto da serrinha se inscreve pela vez primeira: “o jongo é pai de tudo isso, ou mãe. o jongo é muito respeitado. o jongo mata. o jongo carece até cabeças maduras pelo seguinte motivo, o jongo é deitado no meta-metá, o linguajar de caboclo, é eu falar consigo dirigindo-me a ele. e tem que saber desamarrar, desatar aquilo; entender que é consigo o que estou falando“ (roberto moura in tia ciata e a pequena áfrica no rio de janeiro).

pai e mãe. a palavra injusta. pua. puya. ímã. é eu dizer metá-metá, mas dirigindo-me à metalinguagem. jongo é jongo, mata. até que ponto minhas palavras, minha fabulação coxa, reduzem a maravilha do jongo? o jongo mata por sua abertura semântica, por sua abreviatura estrutural. sua simbólica imediata, extraída do referente mais contíguo. o símbolo clássico, por característica, necessita, para uma fruição adequada, de um pernoite diacrônico em certa medida longo, demorado (tempo para testes melífluos de aplicação e receptividade, em outras malditas palavras), até que ele inicie a se desfazer do seu contorno de arestas, perfil fibroso, e permita um contato com o mínimo de ruído possível. com o jongo o negócio já é diferente, a semiótica do jongo não se presta a detalhes semelhantes. jongo é símbolo por ligação direta, símbolo provisório, precário; específico para a situação-figuração que lhe diz respeito naquele momento. antiaristocrático. não quer o universal, isto é, consumar-se como interpretante final. patamar homologador de uma almejada predominância, permanência de leitura. quem sabe, descartável o símbolo do jongo? porém, não. nem. neste pé, o jogo semiótico do jongo é que está mais perto da arbitrariedade inventiva, porquanto híbrido, brusco, e algo tosco. o símbolo universal, de matriz europeia, ideológico, clássico, é justamente o contrário: tradição monolítica, sedimentação, progressiva elisão do referente até o acabamento retórico do seu conteúdo-funcionamento cosmopolita, vestido em seguida de familiar unanimidade no que respeita à sua eficácia comunicativa. hóspede sem áspide.







[1] Texto apresentado em painel dentro da programação do II Perfil de Literatura Negra, SP/RJ, 1987. Ensaio de ensaio, sua redação se deu na primavera daquele ano. Na versão atual, a alteração mais significativa diz respeito à pontuação, que antes não havia. À época me limitava a usar parênteses, dois-pontos e ponto-final. Mantenho o layout original: texto todo em minúsculas.

[2] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/

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