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Dois absurdos






Dois absurdos
Ronald Augusto[1]

Primeiro

O negacionismo de nossa formação no tocante às questões raciais se manifesta de variados modos. Se não, vejamos. Algumas pessoas tentam livrar a cara de intelectuais e personalidades do passado (Monteiro Lobato foi um deles), fervorosos defensores da eugenia, por exemplo. Os seguidores-criadores das fanpages desses figurões brancos argumentam que eles eram apenas fruto de uma época onde essa ideia era aceita ou generalizada sem mais. Com isso tentam dar uma dimensão antes culposa do que dolosa às suas intervenções. Mas se levássemos a sério a defesa acima, então alguém poderia afirmar o seguinte: “Ah, sim, de fato, tanto é verdade que todos os negros africanos do período colonial cruzaram voluntariamente o atlântico para viver uma vida de escravo ao pé do sinhozinho mais próximo, pois estavam bem informados acerca do conhecimento e das ideias de seu tempo e, naturalmente, aceitavam-nas”. Reductio ad absurdum I.
Meu caro interlocutor, meu desigual, o lance é o seguinte, não se trata apenas de denunciar (ou de reivindicar) quem começou primeiro isto ou aquilo, não é bem isso. Esta sequência de considerações surgiu de uma irritação recorrente (para mim, evidentemente) relativa à facilidade com que ficamos “sensibilizados” com umas coisas e não com outras. Por exemplo, fico aturdido com as estatísticas sobre as mortes violentas de jovens negros e, além disso, com os números sobre as mortes de mulheres negras, pois enfrentamos um genocídio “silencioso”.
Acontece o mesmo também com relação à violência contra as mulheres e os estupros – a reiteração do feminicídio –, você bem sabe, eu não preciso ir muito longe, pois não quero parecer nem demagogo nem sentimental, já que a situação toda é horrorosa. E junto com minha sensação de fraqueza ainda tenho que acompanhar a comoção de um monte de gente com acontecimentos e eventos (p.ex., a falência de uma editora chique) que, quando comparados ao quadro mencionado acima não passam de frivolidades.

Segundo

Sobre o suposto racismo reverso: consta que muitos não negros se sentem ofendidos quando são chamados de “branquelos”, portanto, replicam que quem eventualmente assim se refere a eles estaria sendo racista. Sabe o que eu acho? Assim, ó: lembro-me de que, não faz muito tempo, era comum (ou ainda é) alguém advertir “vê se não faz coisa de negro”, querendo significar singelamente com isso “vê se não faz merda”. Mas, eu me pergunto, se a expressão “fazer coisa de branco” (ou “coisa de branquelo”), por alguma inexplicável razão, caísse no gosto do vulgo, que tipo de acepções ela comportaria?
Uma coisa é a ocasional referência discriminatória, essencialmente reativa (mas que serve de argumento ao raciocínio tolo de quem reivindica, por exemplo, um “dia da consciência branca”); outra coisa é a sistemática referência discriminatória (principalmente contra quem é negro) a ponto de se tornar estrutural e estruturante de determinada cultura ou identidade nacional. É risível e, em certa medida, até revoltante assistir a um branco bater no peito se dizendo discriminado “simplesmente por ser não negro” ou porque seria refém do “politicamente correto”; prova de reductio ad absurdum II relativamente à inveja.
Uma vez vi e ouvi em entrevista de tv uma pergunta formulada pelo geógrafo Milton Santos que me parece apropriada para tudo isso, e era mais ou menos assim: “a questão é saber que futuro o Brasil quer para a sua população negra?”. Embora eu acredite que não há um “problema do negro”, mas sim um “problema do branco” (os privilégios e o patrimonialismo da branquitude institucionalizada), os problemas fundamentais do Brasil estão sempre sendo negados ou deixados para depois.



[1] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com 

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