Os
poemas que nos esperam
Claudio Cruz[1]
O amor está fora de moda nos meios intelectuais.
Roland Barthes
Less is more. A
célebre frase do arquiteto Mies van der Rohe parece acompanhar desde o
princípio, como um baixo contínuo, a
já longa produção poética de Ronald Augusto. Make it new, a não menos célebre formulação de Pound, também o
acompanha desde sempre. Poeta clara e inequivocamente estabelecido dentro de
uma tradição da poesia moderna que prima acima de tudo pela invenção, tendo como princípio um
construtivismo rigoroso, e que teve e tem no Concretismo o seu programa
estético mais consistente no âmbito da poesia brasileira, Ronald Augusto
encontra-se aqui com o mais tradicional de todos os temas presentes na
literatura do Ocidente, ou seja, o tema amoroso. Para mim, que acompanho mais
de perto a sua trajetória poética desde a década de 1990, pelo menos, foi com
absoluta surpresa que me deparei com À
Ipásia que o espera. Diga-se de imediato que o tema amoroso, ainda que sem
atingir a centralidade que obteve no período romântico, não foi abandonado
pelos poetas modernos, bastando lembrar, por exemplo, a vertente surrealista.
Em relação ao Brasil, o caso mais evidente e famoso é o de Vinicius de Moraes,
mas poetas tão representativos da moderna poesia brasileira como Mário de
Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira não deixaram de escrever alguns dos mais admiráveis poemas amorosos em
língua portuguesa. Apesar de ser o mais idoso deles, deixei Bandeira por último
pela importância de sua arte poética para Ronald Augusto. Seria mais pertinente
dizer, no caso, a importância ainda maior que ganha aqui a sua ars amatoria. Acredito que o modo de
operar de Bandeira foi decisivo para o bom encaminhamento geral dos poemas que
se vão ler. Não sei até que ponto isso ocorreu de forma consciente, embora, em
se tratando de um poeta de viés construtivista como Ronald Augusto, este
procedimento venha a ser o mais esperado. O que importa destacar é que foi
Bandeira quem escreveu versos como esses: “Deixa o teu corpo entender-se com o
outro corpo. / Porque os corpos se entendem, mas as almas não”. O poema se chama justamente “Arte de amar”. Lembro
aqui tal poema no intuito de estabelecer uma analogia no âmbito mesmo da
construção poética. Quer me parecer que o grande desafio que se apresentou para
o autor de À Ipásia que o espera foi justamente conjugar
procedimentos construtivistas e, portanto, bastante cerebrais, com um tema tão
corporal, no sentido dado por Bandeira. Diga-se de passagem que, em
determinados momentos, um certo excesso de cerebralismo poderia ter sido
evitado, para efeito de uma maior adequação ao tema tratado (menos “alma” e
mais “corpo”), mas sem dúvida que o ganho final é recompensador. Em alguns
momentos, Ronald Augusto chega mesmo a fazer jus, sem nenhuma necessidade de
qualquer condescendência, muito frequente em prólogos como esse, ao seu grande
mestre, devidamente homenageado, aliás, num dos mais belos poemas do livro.
Acredito que Manuel Bandeira, se vivo fosse, assinaria uma composição como
“dois poemas”, ou pelo menos a aprovaria com entusiasmo:
quantos
palmos
de
altura
tem
minha polaca abissínia?
quero-a
untada
com
o melaço do meu sêmen
Eis um exemplo cabal de quando ideias como less is more e make it new se justificam plenamente, eis um exemplo cabal de como
toda uma vida de pesquisas, experimentos e procedimentos construtivistas
guiados fundamentalmente pela razão servem
ao corpo. Essa é a polaca abissínia, musa do poeta, sua beatrice, sua marília.
O gozo de nomear o ser amado: menina, neguinha, sierva, ártemis, dionísia,
ondina, iansã e, claro, ipásia. Essa simples enumeração já aponta para o alto
grau de intertextualidade que o leitor encontrará no livro, de resto uma
característica marcante em toda a poesia de Ronald Augusto. Aqui, em
particular, é como se o poeta quisesse cantar o seu amor, singular e único, em
todas as línguas poéticas, uma espécie de paideuma
estritamente amoroso. Muito além de uma mera demonstração erudita, o que pode
estar justificando esse “jogo” é um dos fatores mais inusitados, senão dos mais
originais, nessa ars amatoria. É que
a sua musa também é poeta: “sou um cara de sorte / minha abissínia faz poemas”.
O certo é que uma das características mais interessantes desta breve coletânea
é o verdadeiro passeio que o leitor fará por toda a tradição da poesia
ocidental, desde os gregos, como Anacreonte, e os latinos, a começar por
Ovídio, responsável pela epígrafe do livro, até os modernos, sem deixar de
passar pelo “Cântico dos Cânticos” e pelos trovadores portugueses, assim como
por um ou dois poemas que se enquadrariam perfeitamente dentro do que se
chamava de poema fescenino. A impressão que fica é que, dada a absoluta unidade
do tema – a paixão amorosa – o poeta sentiu-se impelido a, ou livre para,
cantar de todas as maneiras a sua amada. Pensando-se do ponto de vista
estritamente composicional, e transpondo para o âmbito mais íntimo próprio da
poesia lírica, talvez não fosse tão disparatado pensar-se numa aproximação com
o método utilizado por Joyce na elaboração de seu Ulisses, quando reserva para cada um dos capítulos do seu romance
uma determinada dicção, um determinado tipo ou gênero de discurso.
Gostaria ainda de chamar a atenção para o
inusitado dessa última publicação de Ronald Augusto – toda ela dedicada
exclusivamente ao tema amoroso –, pelo menos se pensarmos no âmbito da lírica
brasileira das últimas décadas, em que esse tema praticamente desapareceu, ou,
pelo menos, deixou de ter qualquer impacto maior na vida cultural brasileira.
Claro que estou me referindo aqui, estritamente, ao que alguns críticos
denominam de “série literária”, ou seja, aquelas produções poéticas veiculadas
em livro. A canção popular, particularmente forte no Brasil, assim como outras
manifestações culturais como o cinema e a televisão, e mesmo a literatura em
sua forma narrativa, continuaram sempre tratando desse tema que, basta abrir os
olhos, nunca deixou de marcar uma presença considerável na vida de todos. À Ipásia que o espera pode vir a se
constituir como um sintoma de que, nestes primeiros anos do século XXI, a
poesia lírica propriamente dita volta a se preocupar efetivamente com aquele
tema que, no seu imenso conjunto de composições, mais a vinha preocupando
através dos séculos, ou seja, o tema amoroso. Mas sobre isso só o tempo poderá
dar a palavra final.
[1]
Claudio Cruz é escritor e poeta. Doutor em Teoria Literária pela PUC do Rio
Grande do Sul, com pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires e professor de
Literatura Brasileira na UFSC. É autor de, entre outros, Literatura e cidade moderna (1994), do romance Arrabaleros (2006) e do conjunto A ilha do tesouro e outros poemas (2009).
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