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contra a cafonice amorosa



Contra a cafonice amorosa
Eduardo Vicentini de Medeiros[1]

Cometer poemas carrega lá seus perigos. Quando a amada é alvo do verso então, avista-se tenebroso triângulo das bermudas com seus vértices de naufrágio: a cafonice, o sentimentalismo e o derrame lamuriante sem beiras nem eiras.  E cantar musa viva e poetisa, quem se atreve? Ronald Augusto o fez em “À Ipásia que o espera” cruzando incólume tais ameaças com língua atesada, vento de popa e verga firme. E quando a maré não estava pra peixe, rumou por terra, “oito horas e meia de viagem/ dentro de ônibus em noturna via”. Diga-se, de passagem, que Ronald articula seu périplo com requinte multimodal. Sua caixa de ferramentas é repleta de surpresas.
Destaco um quarteto de pasmos e admirações. Começando pelos caligramas espalhados aqui e acolá, com aquele viço de coisa desde sempre provisória que lembra alegremente o caderno de notas que, ao que tudo indica, está sempre à mão do poeta (e de sua musa) pra conter jorros de palavras e garatujas. Oxalá nos presenteie o autor com alguma outra edição com mais exemplares. Há uma tradição latente a ser preenchida, passando pelas ilustrações de “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade” e “Tatuagens” de Edgard Braga, espécie de action poetry a plenos punhos, que Ronald nos dá pequena e encorajadora amostra.     
Outra banana onde poetas de todos os matizes e quadrantes costumam escorregar é a representação do que nos passa na cachola quando sonhamos ou daquela zona gris entre sono e vigília onde transitam vários poemas de “À Ipásia que o espera”.  A esparrela da écriture automatique, que tanto arremedo recebe na levada poética dos dias que correm, desemboca na direção contrária do engenho construtivo e da concisão que cabe esperar da boa poesia de invenção, do trobar ric que Ronald executa sem mutreta.
Embreto aqui meu segundo pasmo admirado. Ronald é craque no quesito de mesclar sono, sonho e sexo. Quando não é o poeta que sonha; vela, insone, o sono da amada. Quando sonha me faz recordar Quevedo (“¡Ay, Floralba! Soñé que te… ¿Direlo?”), Gregório (“Ai, Custódia! sonhei, não sei se o diga”) e Giambattista Marino, mestres no artifício barroco do sonho erótico, mesclando desejo e intangibilidade. Quando vela, é na presença do corpo quase sempre desnudo da amada – donde um dos picos do livro, priápico na veia:

“A musa se deita e dorme (após
servir-me dela). Observo-a
desde minha coya de amor: o cós
(essa espádua que ondula), a desora,
o sono de lado e a concha da axila.
Em seus sonhos toda se dessigila”

O terceiro mote é a bem bolada síntese do ar coloquial da língua materna e da sutil arte de espanar dicionários. Ladeiam ‘beiços’ e ‘miscíveis’, ‘menina’ e ‘incunábulo’, ‘tremelica’ e ‘senescente’, ‘pau’ e ‘térmitas’, ‘neguinha’ e ‘libada’, ‘coxas’ e ‘decúbito’. Forçar o léxico na direção do menos dito ou mesmo do inaudito é louvável  ars poetica.
Meu quarto e derradeiro pasmo é saborear a destreza com que Ronald desvencilha-se da maçada metalinguística do poema que fala dele mesmo, doutros poetas, doutros poemas, de tramas ao escrevê-lo etc. Toda vez que a intertextualidade marca presença, o faz com engajamento preciso. Ovídio na função de abre-alas. Manuel Bandeira, onipresente. Pound, envelhecendo e amando. Octávio Paz, Murilo Mendes, Dante e Oswald, de soslaio mãos dadas com Caminha. E quantos outros minha ignorância não permitiu ver? Provavelmente tantos quantos os pasmos que me passaram batidos, os alumbramentos que me reserva a próxima deitada de olhos nas páginas de “À Ipásia que o espera” pois é caminho que merece outras caminhadas. Salve Ronald!



[1] Eduardo Vicentini de Medeiros, é professor de Filosofia (PNPD Capes Unisinos) e Editor Assistente da Revista Filosofia Unisinos.

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