Versos de verdade
Ricardo Silvestrin[1]
A imprensa, atrás do fuxico
literário, sempre martelou as motivações amorosas dos poemas de Quintana. O poeta
tinha que didaticamente esclarecer: uma amada não é um ponto de chegada de um
poema, mas um ponto de partida. Ou, como também escreveu, que não fazia versos
para ti, mas versos de ti.
A questão estética colocada por
Quintana é o que está também em jogo nesse novo livro do poeta Ronald Augusto.
Ou seja, mesmo que os poemas nasçam de uma motivação real, de alguém com nome,
endereço e cpf, o que resulta como texto criativo é o que conta.
Nesse sentido, num primeiro
momento, salta aos olhos a fluidez com que cada poema do livro é lido.
Contrasta com grande parte da produção do Ronald, com aquela sua arte que
coloca pedras no caminho do leitor, propondo a quem o ler que se vire. Aqui,
mesmo que, de quando em quando, uma outra palavra, uma ou outra referência
exijam uma pausa para entender do que se trata, o texto é predominantemente
receptivo ao diálogo, à conversa com quem o lê.
É como se a receptividade ao
outro que advém do enleio amoroso se estendesse a nós, os leitores. Somos
convidados a entrar e a comemorar com o eu do livro o amor, o prazer, a vida
bem vivida. Como escreveu Sêneca, a questão não é viver, mas viver bem. Quem
não vive bem pode seguir por duzentos anos e, na hora da morte, vai se lamentar
que não viveu. Por outro lado, quem está numa boa pode até, como no poema que
encerra esse volume, constatar frente ao espelho a passagem do tempo, a barba
com “uma áspera penugem branca”, mas sorrir ao aceno da amada que surge por
trás dos seus olhos.
Uma cena recorrente em alguns
poemas é o eu-poeta no escuro, insone, escrevendo sobre o corpo, alvo, da
mulher que dorme entre os lençóis. Assemelha-se ao esforço do texto que se nos
apresenta, de ir do escuro ao claro, ou do trovar escuro ao trovar claro.
Em outro trecho, lemos: “penso
que talvez meu fraco (…) venha/agora a calhar com toda força/levando-me a
versos de verdade”. Essa afirmação da poesia e do poeta está noutro poema:
“quero ficar como o poeta de denixe/denixe que é do Ronald/(ela me chama: meu
poeta)” - aqui foram citados outros poetas que também
cantaram seus amores e que entraram para a história.
Versos de verdade podem remeter
ao que é representado/reconstruído nos enredos de cada poema. Há cenas,
personagens, a paisagem. Mas também ao prazer e ao gozo de escrever com força,
movido pela alegria do convívio que transborda no livro. Alegria que faz querer
superar todas as influências ou confluências (para usar um outro termo do
Quintana, a de que somente somos influenciados por autores que tenham o que já
tínhamos em nós) e ser, de uma vez por todas, o poeta, e o homem, Ronald
Augusto.
[1]
Ricardo
Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve
contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É
colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa
Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos
vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e
Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para
as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas
sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete
mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com
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