Na recente edição de Estudos de
literatura brasileira contemporânea, n. 51 (maio/agosto) foi
publicado um importante dossiê
que reúne uma série de entrevistas realizadas com escritores/as negros/as ao
longo do segundo semestre de 2016. Para quem quiser conferir o conjunto das
entrevistas segue o link: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/index
É importante advertir que nem todas as
entrevistas foram publicadas na íntegra, foi o caso da minha, por isso resolvo
publicá-la aqui sem as exclusões definidas pelo critério dos entrevistadores/editores.
Duas ou três perguntas que me foram feitas (e respondidas) acabaram por ser
descartadas. Publico tudo por estima ao detalhe.
Entrevista:
Ronald Augusto
Qual
a sua relação com a literatura? Por que você escreve, afinal?
É uma
relação um pouco conflituosa, por algumas razões. Uma delas, a impaciência com
a literatura, tem mais a ver com as circunstâncias de lugar e tempo onde minha
prática está implicada, ou seja, tem momentos em que, diante do que é festejado
como “grande literatura”, me sinto bastante contrariado, porque, hoje,
produtores e recepção parecem estar pouco exigentes, resignados demais com a
facilidade, com a rapidez, a síntese e o biográfico. Enfim, certos valores
estéticos que, do meu ponto de vista, podem ser úteis a propósitos determinados
e viáveis em algumas circunstâncias acabaram se impondo por si mesmos como uma
espécie de padrão poético comunicativo. Clichês do tipo “o menos é mais”, “a
arte se confunde com a vida”, “escrita competente”, “literatura como ferramenta
de transformação”, etc, tudo isso entra na conta dos modos de consagração por
via da impostura do mercado cultural. Em alguma medida, sem desprezar outras
razões, eu escrevo também contra esse estado de coisas.
Você acha importante se dizer autor/a negro/a
dentro do campo literário brasileiro? O rótulo demarca ou aprisiona sua
trajetória?
Acho
importante, sim. Tem branco demais empatando a nossa passagem. Mas essa mesma
vertente negra, na medida em que se afirma como ruptura perante o sistema
canônico, eventualmente oblitera vozes que desbordam, aqui e ali, do tom e dos
estilemas esperados para um “autor negro”. Aprecio antes o idiossincrático do
que o gesto de “cerrar fileiras”. Em outras palavras, gosto de me sentir
implicitamente, e não superficialmente, um poeta negro. Se meu trabalho for
analisado por uma ótica, digamos assim, “conteudística”, talvez ele não se
revele tão convincente e útil, mas isso pouco me importa. Minha trajetória até
agora tem sido bastante plural e se, em algum momento, ela for aprisionada ou
demarcada, não será, espero, por minha culpa, mas por culpa desse ou daquele
leitor aferrado ao seu intento interpretativo.
O racismo presente na sociedade brasileira
afeta a sua produção? De que modo?
Me afeta
como homem, como pessoa e, de maneira indireta e não documental, vai acabar
aparecendo de um jeito transfigurado na minha condição de poeta. A propósito de
coisa parecida, Octavio Paz escreve que a vida não explica diretamente o poema
e o poema tampouco explica a vida, pois há algo que está apenas no poema e que
não está na vida do poeta. Por outro lado, tem coisas que só cabem na vida do
sujeito, coisas que nenhum símbolo dá conta de traduzir. Para alguns pode
parecer difícil de acreditar, mas a poesia tem seus limites, felizmente ela não
é uma panaceia.
Quais temas ultimamente lhe interessam, lhe
instigam a escrever? Ou é uma forma que o/a leva a uma ideia? Por onde começa a
escrita?
Não tenho
temas preferidos, inclusive, porque entendo que não há um sentido (tema) que
preceda ou seja posterior à fatura do poema, isto é, o desejo de formar um
poema engendra simultaneamente os seus processos significantes ou o seu “tema”.
A temática pode resultar numa camisa-de-força. Me sinto movido pela forma, mas
quando digo “forma” é importante frisar que isso não quer significar “embelezar
o poema”, não se trata de algo decorativo, não é uma moldura para a ideia.
Aliás, alguém já disse que o conteúdo é uma função da forma. Um poema, como
qualquer objeto de arte, é uma forma significante.
Qual relação de sua escrita com suas
experiências (pensando em raça, gênero, classe, moradia, geração etc.)?
Essa
questão me parece análoga àquela relativa ao racismo afetando ou não minha
produção. Ou seja, todas essas experiências interferem de maneira indireta e
não documental em minha escrita. Em termos estritamente poéticos, considero-as
secundárias ou complementares, porém não irrelevantes.
Qual o peso que o machismo ainda tem no
Brasil atual?
Um peso
intolerável. Entretanto, mesmo considerando a significação da solidariedade dos
homens nessa luta de combate às violências contra as mulheres, acho que o
discurso da sororidade é muito mais
relevante do que qualquer coisa que eu diga a respeito. Enfim, eu tento não
atrapalhar a luta feminista e, ao mesmo tempo, busco fazer um exercício de
escuta. Os homens precisam fazer isso em relação às mulheres, e os brancos em
relação aos negros.
Quais os/as autores/as, pensadores/as,
pessoas têm influência na sua obra?
Em
primeiro lugar, Manuel Bandeira, porque é um poeta completo no que diz respeito
aos valores da poesia moderna, seu verso livre é de uma elegância sem limites,
sua poesia é irônica e auto-irônica. A poesia de Bandeira, em vários aspectos,
é antecipatória da dicção de João Cabral (outro grande poeta), sua poesia tem
lances experimentais e concretos, seu lirismo não é edulcorado. Bandeira é
superior ao Drummond, o próprio itabirano admitiu isso. Mas eu não posso deixar
de mencionar Dante, Mallarmé e Cruz e Sousa. Os três são grandes poetas,
portanto, se eu ficasse indiferente às realizações textuais que eles levaram a
cabo, estaria marcando passo relativamente à minha formação como poeta. Dante
sintetiza duas vertentes fundamentais da tradição poética, a épica e a lírica
trovadoresca, além disso, incorporou filosofia, teologia, ciência e política em
sua Commedia. Mas a força de sua poesia está nessa conjunção entre a
épica e o trovadorismo que acaba conferindo à sua linguagem um tom entre
trágico e cortês; seus tercetos denunciam uma severa compaixão relativamente às
almas que vagam nos reinos ínferos. Ninguém conseguiu imagens e metáforas mais
nítidas e precisas do que Dante. Cruz e Sousa e Mallarmé, são os simbolistas
dos simbolistas. Cruz e Sousa quase funda o neobarroco devido aos excessos de
seu discurso (aliás, os representantes do simbolismo latu sensu
de Edmund Wilson, são todos barroquizantes: Joyce, W. B. Yetas, T. S.
Eliot...); em âmbito nacional, e pelo viés das nossas contradições étnicas,
Cruz e Sousa está para a poesia, assim como Aleijadinho está para as artes.
Mallarmé já foi chamado de o “Dante da idade industrial”. Mas ele é genial
porque libertou a poesia do objeto, da fidelidade ao significado, da recusa ao
vazio. Depois do poema Un coup de dés a poesia
virou uma arte também do espaço. A sintaxe de Mallarmé é a coisa mais estranha
que já vi. Também gosto muito de Ezra Pound. Já no que respeita à prosa,
Machado de Assis é o maioral. Seu intersemiótico Memórias póstumas
de Brás Cubas é um livro
extremamente iconoclasta ou um cruel divertissement bem ao estilo do século 19. Mas,
para quem não sabe, o humor de Machado de Assis não tem nenhuma relação com
esse da inflação do stand-up cuja gargalhada é reacionária e nada
inventiva, humor fácil que reproduz todos os preconceitos naturalizados e que
se submete ao vale-tudo de fazer rir doa a quem doer. O humor auto-irônico de
Machado não é o do “atendimento ao cliente”. Veja, por exemplo, como o autor
defunto conclui o prólogo ao leitor de suas memórias póstumas: “A obra em si
mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus”. Um clássico perverso, crítico.
É possível desvincular a produção literária
de um ato político?
Sim, é
possível, mas isso só vai resultar no anacronismo da “poesia pura”, além disso
será uma “poesia pura” de fachada. Ruídos ideológicos, políticos, sempre entram
na economia construtiva do poema, a questão é saber o quanto o poeta está
consciente desse controverso insumo em sua escrita e como ele consegue
transfigurar isso de um modo que resulte em algo esteticamente funcional, isto
é, de modo que o poema se sustente em pé.
Em diversos trabalhos de autoria negra vemos
o corpo como uma dimensão muito presente. O que esse corpo significa em sua
produção? A que ele serve?
Pois é,
não sei ao certo se o corpo é de fato uma dimensão predominante na literatura
de autoria negra. A impressão que eu tenho é que, grosso modo, essa dimensão é
bastante ratificada nos textos das mulheres (brancas e negras, mas respeitando
especificidades) que, por sua vez, com isso retificam uma série de convenções e
estereótipos com que as vozes dos homens tentam moldar o corpo e o desejo femininos.
No meu trabalho não penso o corpo ou a metáfora do corpo como algo fundamental.
O que eu acho importante é que as dimensões oral e sonora da poesia representam
emanações do corpo, isto é, a palavra é uma coisa material, não é apenas ideia,
é som, vocalização e cadência, enfim, o poema quando dito à viva voz é o e do
corpo; o poema é uma coisa, um objeto no
mundo. Poesia é um complexo semiótico relativo ao corpo e sua expressividade.
Qual a importância e o papel da literatura
num país com tamanhas desigualdades sociais?
Ah, essa
é uma questão complicada. Não faço nenhum tipo de aposta que aponte, por
exemplo, na direção de uma suposta responsabilidade social da literatura. Mas é
bem possível que essa responsabilidade social da literatura encontre algum
autor interessado em justificá-la com sua obra. As desigualdades sociais devem
ser resolvidas principalmente pela sociedade através de políticas públicas,
através das lutas sociais contra todas as formas de desrespeito e assimetria no
que toca aos direitos dos sujeitos.
Quem são os seus leitores? Qual leitor você
imagina quando escreve e quem você sabe que lê seus livros?
Espero
que sejam aqueles leitores que apreciem o difícil, que não queiram que eu lhes
explique o significado dos meus poemas, que não temam cair numa deriva
semântica, que não procurem em meus poemas boas intenções, que não se
interessem por minha biografia. Que esses leitores se disponham a ler meus
poemas como se eles tivessem sido escritos em uma língua estranha.
É possível vislumbrar uma melhora na inserção
no mercado editorial a partir de novas mídias, como as redes sociais? Isso tem
alguma influência na sua escrita?
É
possível, sim. Ao menos no campo editorial dedicado à poesia, cuja rede e o
mercado são menores do que o da prosa, por exemplo, acho que as novas mídias e
as redes sociais funcionam muito bem. Mas a influência dessa realidade na minha
escrita é mínima. Ainda.
Se fosse possível criar uma imagem do Brasil
a partir dos escritores contemporâneos, qual imagem você acha que teríamos
representada?
Em termos
canônicos o Brasil seria e é representado por escritores brancos, homens. Mas por
enquanto.
Qual sua análise sobre um aumento dos mais
diversos tipos de intolerância (religiosa, de gênero, racial, social) no país?
Vivemos tempos mais violentos?
Minha
análise não ultrapassa os limites do bom senso que concorda que estamos
correndo um risco de retrocesso. Há pessoas com mais experiência do que eu e
com instrumental teórico mais eficiente do que disponho para fazer uma análise
radical e justa da coisa. Temos que lutar para que esses tempos violentos não
durem muito.
Qual importância da liberdade e democracia
para a literatura?
A
importância é relativa. Por um lado, é possível se produzir boa literatura sob
regimes autoritários, por outro lado, sob a égide de regimes democráticos muita
literatura de péssima categoria foi e é produzida (e o que é pior, festejada),
o mesmo vale se invertêssemos os termos dessa equação. Mas eu prefiro,
naturalmente, escrever em uma situação em que minhas liberdades fundamentais
estejam garantidas.
Qual poema, conto, livro seu você escolheria
para se apresentar?
Eu me
apresentaria com o livro Confissões
Aplicadas (2004), percurso textual-vivencial no qual se conjugam
experiências porto-alegrenses e soteropolitanas. Mas me orgulho demais de ter
organizado e apresentado o livro Obra
Reunida (2012) do poeta Oliveira Silveira (1941-2009). Todos os poemas
publicados em vida pelo poeta, além de um excerto (inédito) da tradução parcial
de Cahier d’un retour au pays natal
(de Aimé Césaire) e de exercícios de juventude de Oliveira, desconhecidos por
seus leitores, estão enfeixados neste conjunto que abarca quase cinquenta anos
de atividade poética.
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