Ensaio sobre o homem:
o drama da filosofia antropológica
Ronald Augusto[1]
Antes
da resenha
Quando um prefácio vence
tanto os limites protocolares dos agradecimentos e das ofertas às pessoas que
se mostraram importantes à consecução da obra, como põe de lado o rodeio das
informações que a bem da verdade não colaboram em nada para a sua compreensão,
pode-se dizer que neste caso estamos diante de um texto relevante, integrado e
indispensável ao conjunto. Isto é, uma apresentação com estas características
não pode ter sua significação subestimada. Embora Ernst Cassirer não descarte
de todo alguns traços tradicionais da forma do prefácio – os agradecimentos e
os reconhecimentos, por exemplo, estão lá –, em seu prefácio ele afirma e
prepara o leitor para algumas questões que julgo importante destacar.
Em primeiro lugar,
Cassirer confessa que em Filosofia das
Formas Simbólicas (1923) desprezou a máxima estilística de [Gotthold Ephraim] Lessing segundo a qual “Um
livro grande é um livro mau”. Em Ensaio sobre o homem[2] – ainda que se trate de um
livro de mais de quatrocentas páginas – o filósofo alega que não pretende
repetir não digo o erro, mas, antes, um estilo mais excessivo ou dispersivo que
teria caracterizado a obra anterior. Ao mesmo tempo, desde o título, o livro
que é objeto da presente resenha, denuncia o estilo literário eleito e
conquistado pelo filósofo para dar forma ao seu pensamento: o ensaio.
De
qualquer modo, é inegável que há certa monumentalidade implicada no livro de
Cassirer, e um dos riscos possíveis é o leitor ficar com a impressão de que
devido à grande massa de temas à primeira vista amplamente divergentes, ele
talvez esteja, com efeito, diante de “um mixtum compositum das coisas mais disparatadas e heterogêneas”. Afinal
de contas a obra se ocupa de tópicos psicológicos, ontológicos e
epistemológicos e, além disto, avança através de capítulos dedicados ao Mito e
Religião, Linguagem e Arte, Ciência e História. Em outras palavras, há espaço
para uma análise que aponte eventuais perdas de foco ou desvios desnecessários
em Ensaio sobre o
homem. Entretanto, Ernst
Cassirer aposta que o leitor não dará atenção a tais objeções, aliás, seu
objetivo é convencê-lo “de que todos os temas tratados [neste livro] são
apenas, afinal, um único tema”. A forma ensaística do pensamento filosófico de
Cassirer justifica em algum grau o entendimento de que seu percurso discursivo
embora se desdobre em caminhos diferentes, todos eles convergem, finalmente, a
um mesmo centro.
O centro temático, então,
é o homem. Mas apesar desta constatação óbvia, em nenhum momento Cassirer,
segundo suas próprias palavras, pretendeu escrever um livro “popular”. Por
outro lado, ele também admite que seu leitor-modelo não é apenas o especialista
ou o filósofo. Para Cassirer a razão de sua empreitada está no fato de que “os
problemas fundamentais da cultura humana têm um interesse humano geral”, por
isso seu Ensaio sobre o homem não abdica da pretensão de tornar acessíveis
estas questões para o público geral.
Encerro
este preâmbulo a algumas passagens do prefácio ao Ensaio sobre o homem chamando
a atenção para mais um dado que reforça o apetite ensaístico de Cassirer nesta
obra. Como se estreitasse a intimidade com seu leitor o filósofo confessa que
desejou fortemente [grifo meu] não impor-lhe uma teoria pronta e acabada por
meio de um estilo dogmático. De fato, por meio do estilo ensaístico (forma
literária), estilo que supõe uma espécie de deriva tanto interpretativa quanto
narrativa, o texto de Cassirer permite que o leitor assuma a posição de julgar
por si mesmo, pois há espaços a serem preenchidos por um pensamento livre em
direção ao qual ele é incitado.
A
resenha propriamente dita: Capítulo I
No
que respeita à resenha, cujo foco se circunscreve aos três primeiros capítulos
da obra, me parece adequado parodiar Lessing, ou seja, entendo que também uma
resenha grande é uma resenha má. De outra parte, na tentativa de não exceder os
limites funcionais pressupostos na máxima estilística de Lessing, espero não
deixar lacunas demasiadas à leitura do intérprete mais atento.
No
“Capítulo I” (A crise do conhecimento de si e do homem), Ernst
Cassirer traça um panorama ou, por assim dizer, uma genealogia da filosofia
antropológica (às vezes ele também se refere a uma filosofia do homem). O
filósofo expõe a questão (entendida como problema fundamental da cultura humana
e do interesse humano geral) entrelaçando uma visão diacrônica e outra
sincrônica, isto é, no interior da linearidade histórica e dos debates
filosóficos que se sucedem no tempo (diacronia) a questão o “que é o homem?”
(sincronia) subjaz a uma crise geral do conhecimento. Cassirer apresenta as
transformações por que passa esta questão a cada época e como ela ainda
permanece aberta.
O capítulo em questão
começa com uma afirmação que faz lembrar as primeiras linhas da Metafísica de
Aristóteles. Ambos os pensadores se comprometem com afirmações fortes e
ambiciosas. O grego diz que: “Todos os homens, por natureza, desejam conhecer”.
O filósofo alemão, por seu turno, afirma: “Que o conhecimento de si é a mais
alta meta da indagação filosófica parece ser geralmente reconhecido”. Ainda que
possamos vislumbrar exceções ao que parece ser a regra, seja para a tese
aristotélica, isto é, sabemos que há homens que não desejam conhecer; seja para
a tese de Cassirer, isto é, nem sempre o conhecimento de si se revela como uma
meta tão relevante assim para a filosofia. No entanto, mesmo que déssemos
crédito a objeções deste tipo, algo nos diz – talvez a experiência e a
percepção – que ambos os filósofos mais acertam do que erram em suas
respectivas apostas. Tanto de um lado como de outro, haveria como que um
impulso ou uma disposição natural capaz de desencadear no processo cognitivo
humano uma tensão dialética que às vezes direciona seu desejo para o exterior
(o mundo), às vezes o faz se voltar para o interior de si mesmo (o homem).
No que toca a uma
filosofia do homem que se afigura em processo, Cassirer apoia sua afirmação num
olhar em direção ao continuum dos conflitos entre as diferentes escolas
filosóficas ao longo do tempo. Para o filósofo o autoconhecimento como meta da
indagação filosófica sempre esteve no horizonte dos debates mais importantes. O
filósofo considera que o papel, por exemplo, do ceticismo na história das
disputas filosóficas, foi apenas o de propor uma contraposição a um “resoluto
humanismo”. À medida que a crítica cética põe em questão ou deprime a certeza
objetiva do mundo externo, o que entra em cena é a necessidade de o homem
voltar seus pensamentos para o seu próprio ser.
Por outro lado, a imagem
de que o desejo de conhecer se caracterizaria por uma fissura entre esferas
incomunicáveis ou inconciliáveis – conhecimento do mundo versus autoconhecimento
– não corresponde à noção de que os indícios de uma filosofia antropológica
estão prefigurados na tese primeira da doutrina metafísica de Aristóteles. De
fato, Cassirer prefere não dissociar o autoconhecimento desse desejo de
conhecimento algo extrovertido e que, aparentemente, ajusta a sua mira tão só
para o mundo.
Nesta reconstituição de
uma genealogia (lato sensu) da filosofia do homem, Cassirer apresenta os marcos
significativos – filósofos, escolas e visões religiosas – deste pensamento que
parece se afirmar sobre o ponto de vista de que, para além do mero interesse
teórico e especulativo, o autoconhecimento se trata de uma “obrigação
fundamental do homem”. Uma exigência moral que, de acordo com o filósofo, se
inicia assim:
Os
primeiros passos na direção da vida intelectual e cultural do homem podem ser
descritos como atos que implicam uma espécie de ajuste mental ao ambiente. À
medida que a cultura humana progride, porém, logo encontramos uma tendência
oposta da vida humana. Desde os primeiros vislumbres de consciência humana,
encontramos uma visão introvertida da vida que acompanha e complementa essa
visão extrovertida. Quanto mais esse desenvolvimento se afasta dessas origens,
mais essa visão introvertida vem ao primeiro plano.
O
desejo de conhecer descrito por Aristóteles, a curiosidade natural do homem
determinada por seu aparato perceptivo treinado para a extroversão, acha um
desvio ou se deixa seduzir pela introversão.
Para Cassirer essa mudança de direção não significa uma contradição
definitiva, mas uma transvaloração, um ajuste (um imperativo) na direção do que
de fato interessa: o problema do homem. Afinal, uma pretendida explicação do
mundo está inextrincavelmente entrelaçada – ou, talvez, em situação de
dependência com relação – a uma explicação do homem. O pensamento socrático
representa um desses marcos indicativos da reversão do conhecimento e sua meta
investigativa. Cassirer identifica no grande personagem filosófico de Platão um
discurso que põe em questão o predomínio da cosmologia no pensamento grego. Mas
Sócrates não chega a se confrontar diretamente com as teorias de seus
predecessores. Os problemas da física e da metafísica que animaram outros
filósofos gregos do período são deixados de lado por Sócrates. Sequer uma
teoria ética congruente, segundo Cassirer, encontramos em Sócrates. “Resta
apenas uma questão:”, afirma Cassirer, “o que é o homem?”.
Sócrates sustenta e defende sempre o ideal de uma
verdade objetiva, absoluta e universal. Mas o único universo que ele conhece, e
ao qual se referem todas as suas indagações, é o universo do homem. Sua
filosofia – se é que ele possui uma filosofia – é estritamente antropológica.
Seguindo
os rastros formativos desta filosofia do homem, Ernst Cassirer se detém diante
do conflito entre as visões estoica e cristã a respeito do assunto. A concepção
estoica confere ao homem um sentimento tanto de harmonia com a natureza como da
sua autonomia moral em relação à natureza. Mas em seguida o estoicismo teve que
se confrontar com os fundamentos da moralidade e da fé cristã. O aspecto
inconciliável entre os dois ideias que, segundo Cassirer, às vezes estão em
conjunção em algum pensador individual, diz respeito à declarada independência
absoluta do homem. Esta independência, que para os estoicos sabia a uma virtude
fundante, era interpretada pela teoria cristã como um vício e erro decisivos. A
autonomia em relação à moral e à ataraxia advinda da relação harmônica com
mundo natural significa para o estoico uma espécie de plenitude aqui e agora,
mas que do ponto de vista da teoria cristã não pode ser aceita, porque o acesso
a uma plenitude verdadeira decorreria de o homem empreender um movimento em
direção a Deus, bem imutável supremo. Na visão cristã o homem não poderia
engendrar (pecado da soberba), por si mesmo, semelhante harmonia, ela seria,
antes, uma graça concedida por Deus.
Cassirer
identifica nesta conversação crítica entre estoicismo e cristianismo exemplo de
um dos traços distintivos da filosofia antropológica. Seu modus faciendi não se
enquadra na imagem clássica de um demorado e progressivo desenvolvimento de
ideias gerais, nem nos toleráveis termos hegelianos de “um processo dialético
em que cada tese é seguida de sua antítese”. “Se quisermos”, como argumenta
Cassirer a propósito da filosofia antropológica,
apreender os seus reais sentido e importância,
deveremos escolher, não o modo épico de descrição, e sim o dramático. Pois não
somos confrontados com um desenvolvimento pacífico de conceitos ou teorias, mas
com um choque entre poderes espirituais conflitantes. A história da filosofia
antropológica está cheia das mais profundas paixões e emoções humanas.
Um
dos poderes em jogo nestes conflitos através dos quais avança a filosofia
antropológica e, ao mesmo tempo, ponto incontornável no escopo da pergunta “o
que é o homem?”, trata-se do conceito de razão. Ernst Cassirer reserva ao
medieval Santo Agostinho um espaço especial neste ponto do debate. Agostinho
tem sua formação intelectual calcada na filosofia grega e, ao mesmo tempo, é o
pioneiro do pensamento da Idade Media. Cassirer assinala que nas Confissões
podemos registrar sua passagem conflituosa e dramática da filosofia grega para
a revelação cristã. Para Agostinho toda a aventura filosófica anterior ao
aparecimento do Cristo incorria em um erro fundamental e estava contaminada com
uma heresia, qual seja: “O poder da razão era exaltado como o mais alto poder
do homem”. Embora o ponto de partida de que se serve Agostinho para fazer essa
crítica ao poder da razão seja de fundo místico e religioso, sua percepção de
que a razão “é uma das coisas mais questionáveis e ambíguas do mundo” se revela
muito eficaz, afinal de contas, a capacidade racional é algo que se manifesta
justamente no ser humano, quer dizer, essa
coisa cheia de poder, porém também limitada e frágil, e espremida entre os
sentidos e a técnica.
Quando
Agostinho põe em dúvida o poder da razão afirmando que ela “(...) não nos pode
mostrar o caminho para a clareza, a verdade e a sabedoria, pois é em si mesma
obscura em seu sentido (...)”, em certa medida ele acaba por perturbar a
definição de “homem” – em termos da noção dos universais aristotélicos –, pois
a racionalidade serve tanto de sinédoque como de traço essencial e distintivo
do conceito. Portanto, a partir da crítica agostiniana, podemos extrair uma
consequência: se a razão se mostra insuficiente para resumir uma espécie de
caracterização decisiva do homem, então é preciso admitir que ainda não sabemos
o bastante sobre a natureza desse animal bípede.
Cassirer
sugere que desde esse momento de suspeição da razão, as interpretações têm
tentado mostrar que o que caracteriza o homem são a riqueza e sutileza, a
variedade e a versatilidade de sua natureza. As análises que perdem de vista a
descrição dramática do homem, isto é, que fazem especulações visionárias e
épicas a seu respeito, ao invés de se basearem na experiência mesma dele, não
conseguirão ampliar as margens da discussão. Segundo o filósofo
Não há outra maneira de conhecer o homem senão pela
compreensão de sua vida e conduta. (...) A contradição é o próprio elemento da
existência humana. O homem não tem uma “natureza”, um ser simples ou homogêneo.
Ele é uma estranha mistura de ser e não-ser. O lugar dele é entre esses dois
polos opostos.
A
consciência desta complexidade, por seu turno, talvez tenha colaborado para que
aos poucos o homem começasse a se alegrar com uma imagem que tinha de si: a
imagem de que ele se encontrava no centro do mundo. Mas esta imagem de que ele
ocupava o centro era disfarçada com outra ficção: a de que o seu mundo estava
no centro do universo. Cassirer avalia a revolução copernicana não apenas como
uma revolução de consequências importantes para a teoria cosmológica, mas,
também, de grande significação para a filosofia do homem. De acordo com
Cassirer, Giordano Bruno, entusiasta da doutrina de Copérnico, dizia que essa
descoberta “(...) foi o primeiro e decisivo passo em direção à autoliberação do
homem”. Então, diante deste quadro, Cassirer parece cantar
O universo infinito não fixa qualquer limite à razão humana.
O intelecto humano toma consciência de sua própria infinidade medindo seus
poderes pelo universo infinito.
Sobre a
base robusta e científica do sistema heliocêntrico de Copérnico a filosofia
antropológica, segundo Cassirer, já não depende da metafísica, nem da religião
ou da teologia. A teoria copernicana e a filosofia do homem compartilham um
princípio comum. Para ambas há uma ordem no universo na qual o homem ocupa um
papel importante.
Entre os
séculos 18 e 19 a filosofia do homem recebe o impacto de uma abordagem
científica que começa a assumir outros moldes. De acordo com Cassirer a ciência
em curso assume um caráter mais concreto e se baseia antes na observação dos
fatos do que na adoção de princípios gerais. A nova ciência, em certo sentido,
faz a crítica da superestimação dos métodos lógicos e racionais; não é mais
suficiente, segundo Diderot, apenas comparar, organizar e sistematizar os fatos
conhecidos. Estes novos critérios do pensamento científico, segundo a metáfora
empregada por Diderot, nos conduzem a escapar
da ilusão de que o homem que não sabe contar sua fortuna não
está em melhor posição que o homem que não tem fortuna alguma. Mas está
chegando o momento em que superaremos esse preconceito, e então teremos chegado
a um ponto novo e culminante na história da ciência natural.
Mas,
segundo a opinião de Cassirer, é só com a obra de Darwin A origem das Espécies
que a filosofia do homem alcança um terreno seguro. A partir deste momento não
precisaríamos mais dedicar-nos a especulações visionárias, pois, para Cassirer,
não estaríamos em busca de uma definição geral da natureza – tal como
determinava a visão aristotélica – ou da essência do homem. O passo seguinte,
na conclusão de Cassirer, seria recolher as evidências empíricas que a teoria
geral da evolução de Darwin colocou à nossa disposição em uma medida abundante.
A obra do naturalista pretende livrar o pensamento moderno da ilusão das causas
finais aristotélicas. Cassirer argumenta que o pensador grego afirmava
fortemente a impossibilidade de se entender o fenômeno da vida – e por extensão
o do homem – pelas causas acidentais. “A
teoria moderna aceita esse desafio. Pensadores modernos afirmaram”, segundo
Cassirer,
que, após as inúmeras tentativas infrutíferas dos tempos
antigos, conseguimos definitivamente dar conta da vida orgânica como um produto
do mero acaso. As mudanças acidentais que têm lugar na vida de cada organismo
bastam para explicar a transformação gradual que nos leva das formas mais
simples de vida em um protozoário às mais elevadas e complicadas formas.
O acaso
e os dados acidentais participam de forma decisiva na vida natural e na vida do
homem. A contrapelo da tradição clássica que buscava ou vaticinava, seja na
filosofia, seja na ciência, a homogeneidade da natureza humana, o que temos no
momento, seguindo a perspectiva de Ernst Cassirer, é a noção de que propor a
unidade da natureza humana parece ser algo extremamente duvidoso. O desfecho do
“Capítulo I” de Ensaio
sobre o homem mantém a questão em aberto. Em apoio a esta avaliação, Cassirer
cita uma afirmação de Max Scheler segundo a qual “A multiplicidade cada vez
maior das ciências particulares que se dedicam ao estudo do homem confundiu e
obscureceu muito mais que elucidou o nosso conceito de homem”.
Ainda
que nossa capacidade de interpretação não dê conta da abundância de informações
e análises que se vão acumulando a respeito do tema, isto não me parece um
fracasso, apenas demonstra o quão complexo e dramático é para o homem pensar
sobre si mesmo. Diante da tremenda dificuldade de pensar-se a si mesmo em pleno
movimento – isto é, entrelaçado ao acaso e ao acidental –, a tentativa de figuração desse processo como a interpretação teórica de si mesmo acaba por ficar mais ao alcance da
mão.
A resenha propriamente dita:
Capítulo II
A brevidade do “Capítulo II” (Uma chave para a
natureza do homem: o símbolo) é enganosa para o resenhista; a opção pelo resumo
pode empobrecer o que aí é dito. Pretendo respeitar a objetividade dos
conteúdos e das ideias apresentados neste capítulo, ainda que obedecendo à
concisão e, ao mesmo tempo, mantendo alguma coerência.
No capítulo em tela Cassirer investiga aspectos do
pensamento (animal e humano) a partir dos pontos de vista do biólogo e filósofo
Johannes Uexküll. A abordagem de Uexküll pode ser assim resumida: cada
organismo é, por assim dizer, um ser monádico (em referência à mônada: organismo ou unidade orgânica diminuta e muito
simples); ele se insere e um mundo só seu porque tem uma experiência só sua. Os
fenômenos que observamos na vida de uma espécie biológica são irredutíveis a
ela; não são transferíveis a nenhuma outra. Uexküll é categórico: “No mundo de uma mosca
encontramos apenas ‘coisas de mosca’; no mundo de um ouriço-do-mar encontramos
apenas ‘coisas de ouriço-do-mar’”. Este pressuposto leva Uexküll a afirmar que
a anatomia de uma espécie animal nos fornece todos os dados necessários para a
compreensão do seu modo particular de experiência com o ambiente. Cada
organismo não está meramente adaptado ou ajustado ao seu meio. O que constitui
sua estrutura anatômica abriga um sistema receptor e um sistema efeituador: um,
o receptor, permite a uma espécie biológica receber os estímulos externos; o
outro, o efeituador, faz com que uma espécie reaja aos estímulos. Os dois
sistemas atuam em íntima cooperação.
Cassirer, por sua vez, aproveita o esquema proposto
por Uexküll para tentar descrever e caracterizar o mundo humano. No entanto o
mundo humano (seu círculo funcional), tanto em termos quantitativos, como em
termos qualitativos, é bem mais complexo na sua relação com o ambiente. O homem
desenvolveu um terceiro sistema que não é encontrado – ou não é tão
desenvolvido – em outras espécies animais. Cassirer descreve esse sistema como
o sistema simbólico. A vida humana muda dramaticamente com essa nova aquisição.
O sistema simbólico dá ao homem condições de viver não apenas em uma realidade
mais ampla: ele pode viver mesmo, segundo Cassirer, em uma nova dimensão de
realidade.
Ao contrário das reações (sempre diretas) das
formas orgânicas aos estímulos externos, as respostas humanas (diferidas, o
mais das vezes) graças ao sistema simbólico, se caracterizam pela interrupção e
pela demora, indicando com isto um lento e complicado processo de pensamento.
Mas há um preço a pegar pela aquisição desse sistema. Ainda que através dele o
homem tenha acesso à linguagem, ao mito e à arte. Mesmo que correndo o risco de
ser algo dramático, não resta dúvida de que o homem, por assim dizer, está
condenado a não mais viver em um universo meramente físico; de certa forma o
universo simbólico parece ter se tornado seu lugar de eleição. Sua relação com
a realidade está fatalmente mediada por uma “floresta de símbolos”; ele não
pode vê-la frente a frente. Cassirer diz mais:
A realidade física parece
recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar
com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente
consigo mesmo.
Não obstante o estado de ânimo do homem em direção
a essa espécie de solilóquio solipsista, tal circunstância, que talvez
prefigure uma crise, serviu para corrigir e ampliar a definição do homem, isto
é, em vez de caracterizar, sem mais, o homem como animal rationale, devemos ou
podemos defini-lo também como animal symbolicum. Para Cassirer, fazendo esse movimento
a filosofia antropológica em processo consegue designar a diferença específica
do homem e entender a via que ele abre a partir de tal traço: a via para a
civilização.
A resenha propriamente dita:
Capítulo III
Por fim, chegamos ao “Capítulo III” (Das reações
animais às respostas humanas). Em realidade, Cassirer faz do anterior uma
espécie de preparação para este capítulo. Se ele reunisse os dois em um só
capítulo não haveria, me parece, grande problema. O que importa é que para o
filósofo, agora, seu Ensaio sobre o homem, chegou ao primeiro ponto de partida
para o prosseguimento das investigações. É curioso observar que Cassirer, por
meio de seu estilo ensaístico, como que mimetiza aquele terceiro sistema
simbólico, isto é, o avanço de sua obra de cerca de quatrocentas páginas também
se caracteriza pela interrupção e pela demora, seu múltiplo processo de
pensamento reage por espelhismo (e por vezes se distancia) à complexidade do
tema focal da filosofia antropológica.
Cassirer pretende aprofundar a definição do homem
como um animal symbolicum. Ele considera a possibilidade de que talvez o
simbolismo não seja um dom especial da vida humana. Uma descrição mais precisa
do pensamento simbólico do homem podo oferecer um contraponto ou estabelecer um
grau mais seguro de diferença em relação a outros modos de comportamento
simbólico presentes no restante do reino animal. A arte e a religião e, de
resto, a cultura humana, apontam para esta singularidade de pensamento.
Cassirer entende que é na investigação da fala (nos
processos da linguagem) que devemos encontrar os elementos próprios do
pensamento e do comportamento desse homem definido como um animal symbolicum.
Examinando o que Cassirer chama “as camadas geológicas da fala” podemos
destacar, grosso modo, duas formas de linguagem: uma que é mais emotiva e
fundamental, e se parece mais a uma interjeição, além disso, esta linguagem é
verificável tanto na vida humana, quanto na vida animal; já a outra forma de
linguagem (a palavra propriamente dita), segundo Cassirer, não é uma expressão
involuntária de sentimento, mas ela se configura em sentença que tem uma
especializada estrutura sintática e lógica. No entanto, Cassirer observa que a
fronteira entre essas duas formas de linguagem não se apresenta tão nítida assim,
elas se intercomunicam, ou seja, “É certo que até na linguagem altamente
desenvolvida, na linguagem teórica, a ligação com o primeiro elemento não se
rompe por inteiro”.
Para Cassirer o ponto crucial do problema é este:
há uma fissura importante entre o mundo humano, que desenvolveu a linguagem
proposicional, e o mundo animal cuja expressão involuntária de sentimentos se
resolve em linguagem emocional. Cassirer, em seguida, avança para outra
distinção, a saber, aquela a respeito dos sinais e símbolos. Cada uma dessas
noções pertence a um particular universo discursivo. Um sinal tem relação com o
mundo físico do ser; um símbolo é parte integrante do mundo humano do
significado. Em outras palavras, dos sinais se pode dizer que são operadores e
dos símbolos que são designadores. Aqui não se afirma que não haja uma
inteligência animal; apenas que, como paródia ao que foi afirmado acima,
poder-se-ia dizer que a inteligência animal pensa, tão só, “coisas de animal”.
A propósito disto um interlocutor de Cassirer, E. L. Thorndinke, argumenta:
O animal não pensa que um é
como outro, nem confunde, como se diz com frequência, um com outro. Ele não
pensa sobre isso, mas pensa isso...
Em suma, o animal não predica. Mas Cassirer não
nega que o animal possua uma imaginação, afinal, as pesquisas sobre a cognição
animal não param de avançar e seria apressado se comprometer com tal afirmação.
Entretanto apenas o homem desenvolveu uma nova forma de representação via
linguagem: uma imaginação e uma inteligência simbólicas. Cassirer anota que no
desenvolvimento mental individual da vida humana essa transição de uma forma
para outra fica evidente. Coisa que não acontece na passagem da infância para a
vida adulta dos animais, pois, grosso modo, durante algum tempo filhotes de
humanos e de animais reagem de maneira parecida.
A partir da noção de que a linguagem é um fato
antropológico, Cassirer se associa ao filósofo Herder na rejeição da tese
metafísica ou teológica de que a singular fala humana – capacidade desse animal
symbolicum – teria origem divina. Herder enfatiza o
conceito de reflexo que está na base da cultura humana. O que ele chama de
reflexo é o pensamento reflexivo e tal resposta altamente especializada faculta
ao homem “distinguir, dentre toda massa indiscriminada da corrente de fenômenos
sensuais flutuantes, certos elementos fixos para poder isolá-los e concentrar
sua atenção neles”.
Para Herder e, do mesmo modo, para Ernst Cassirer é
justamente esse processo ou sistema, em que são mobilizadas uma imaginação e uma
inteligência simbólicas, que dá condições à vida humana ao escape dos limites
de suas determinações meramente biológicas e práticas. Sem esse simbolismo,
conclui Cassirer, o homem “não teria acesso ao ‘mundo ideal’ que lhe é aberto
em diferentes aspectos pela religião, pela arte, pela filosofia e pela
ciência”.
[1] Ronald
Augusto é
poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/
[2]
CASSIRER, E. Ensaio
sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo:
Martins Fontes, 1994, PP. 3-72. Quase todas as citações subsequentes e entre
aspas presentes no corpo desse texto são extraídas da obra supracitada.
Comentários