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POESIA, CRÍTICA E TRADUÇÃO: ENTREVISTA





O recente número da TRANSLATIO traz essa entrevista feita comigo. Quem tiver interesse no conteúdo completo da presente edição, basta clicar no link abaixo: 




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POESIA, CRÍTICA E TRADUÇÃO: ENTREVISTA COM RONALD AUGUSTO

Ronald Augusto[1]
Dennys Silva-Reis[2]
C. Leonardo B. Antunes[3]

Neste número 13 da Translatio, temos a satisfação de entrevistar o poeta, músico, crítico, letrista e ensaísta Ronald Augusto, nascido em Rio Grande em 1961 e autor de uma extensa e longeva obra criativa que abarca desde o mais experimental das poesias concreta e marginal ao rigor da forma fixa. Organizou, em edição crítica, a Obra Reunida de Oliveira Silveira (2012). Seus ensaios foram reunidos recentemente no livro Decupagens assim (2012). No mesmo ano, sua produção poética, até aquele momento, foi reunida em Cair de costas (2012). Além de escrever letras para diversos artistas, entre eles Marcelo Delacroix e Simone Rasslan, mantém um longo trabalho com a banda Os poETs junto dos poetas-músicos Alexandre Brito e Ricardo Silvestrin.

C. Leonardo B. Antunes (LA): Antes de mais nada, Ronald, gostaria de dizer que é uma honra, uma alegria e um privilégio poder entrevistá-lo para esta edição especial da Translatio: uma honra porque você é, para mim e para muitos, o maior poeta gaúcho da atualidade e certamente um dos nomes mais importantes da poesia brasileira; uma alegria porque você é tão grande poeta quanto amigo; e um privilégio porque, nesse ínterim, acabei eu próprio me tornando tradutor seu ao traduzir três poemas d’À Ipásia que o espera, seu belíssimo e mais recente livro, que possui uma comunicabilidade incomum em relação ao restante de sua obra, em especial aos poemas mais antigos.

Ronald Augusto (RA): Para mim também é uma satisfação pôr em movimento esse diálogo com você, Leonardo. Pois é, esses três poemas que você traduziu se configuram numa parceria que há tempos eu queria fazer contigo, tamanha foi a identificação que se estabeleceu entre nós (espero que seja recíproco: risos) desde o momento em que me tornei seu aluno de grego antigo. Fiz três semestres. De fato, esses poemas de À Ipásia que o espera são menos ásperos em termos de comunicabilidade, ainda que o Claudio Cruz (prefaciador do conjunto) tenha notado que há momentos em que uma certa “cerebração” perturba um ou outro poema. Isto é, a “obscuridade” segue rondando aqui e ali. Essa comunicabilidade aparentemente estranha ao grosso da minha poesia é resultado desse projeto em particular e que precisava ser mais envolvente, digamos assim. São poemas em que quero falar ao desejo e à sensibilidade da Denise, mas isso é feito na perspectiva de também generalizar as imagens e os discursos. Ampliar o campo de sentidos das senhas amorosas. Em certa medida, a tradição literária circunscreve ou disciplina o eros que transfiguro nesse livro. Trata-se de uma tentativa de traduzir para o mundo (a recepção) aquilo que de mais íntimo e indecoroso sussurrei à minha musa, que também é poeta.

LA: Nesse processo de escolhermos alguns poemas seus para traduzir para o Inglês, você inicialmente sugeriu o “Homem ao rubro apócrifo”, tarefa da qual eu prontamente me esquivei, pela evidente dificuldade, senão impossibilidade, de uma tradução adequada. Como confessa, em nota de rodapé, a própria tradutora de uma primeira tentativa de verter esse poema para Inglês, a sua poesia, em especial a sua produção mais antiga, é tida como “difícil”. Sei que você é extremamente avesso a facilitar a compreensão de sua poesia para seus leitores. Entretanto, isso às vezes se faz necessário no processo de tradução. Como você lida com essa dificuldade ao auxiliar o tradutor em sua tarefa? É possível vencer essa dificuldade, ou melhor, recriá-la em outra língua?

RA: A tendência é reclamarmos do “difícil”. Talvez por isso mesmo, hoje em dia, e graças a alguns profissionais e/ou proxenetas do mundo dos negócios, aceitemos o conceito de facilitador, “aquele que torna o processo fácil”. Eu não estou aqui para criar dificuldade aos processos de sentido do leitor, nem, pelo contrário, para facilitar a coisa toda num gesto de comiseração ao leitor. Não me programo para fazer o “difícil”. Meus poemas são “assim” porque, de alguma maneira, as formas artísticas que sempre me interessaram perseguem isso que, em algum lugar, o Augusto de Campos chamou de a “beleza do difícil”. Além do mais, o leitor não precisa ser tutelado. Há duas formas de tutela: (a) avisar ao leitor que ele está diante de um “texto difícil”, que ele deve tomar cuidado, que o texto “não tem sentido” e assim por diante; e (b) que é preciso ser mais comunicativo de modo a conquistar o leitor como uma espécie de seguidor de redes sociais. Em primeiro lugar sobre (a): é o leitor que, no corpo a corpo com o texto, irá julgar da dificuldade ou não do texto e o repertório de que dispõe é fundamental nessa equação; e quanto a (b): o leitor não é bobo, ele precisa assumir sua responsabilidade de intérprete diante de uma espécie de partitura (Joan Brossa dixit) que é o poema, isto é, essa partitura parece aberta, no entanto, há uma séria de indicações implícitas que levam o leitor a interpretá-la dessa ou daquela maneira. Há um contrato tenso entre a liberdade do leitor e a estrutura formal e significativa do poema. No prólogo a Don Quijote Cervantes se refere ao executante de sua obra como um “desocupado lector”. Com esse expediente o narrador coloca o leitor no centro da história. O qualificativo, “desocupado”, denuncia, em tom metalinguístico, o estatuto ético-estético a que está submetido o fruidor desse texto literário, é mesmo uma espécie de chave léxica para uma compreensão provisória da obra. Entra-se no âmbito da leitura-interpretação pela vereda da errância e da vadiação, trata-se de valorizar a leitura desinteressada, leitura de prazer. Grosso modo, esse leitor não se acha imbuído de um desejo de ilustração. Evoca a metáfora do leitor na rede, “este objeto da preguiça”, e não do leitor de lápis em punho, discípulo aplicado, obediente.

LA: Às vezes, ao que me parece, sua poesia flerta com o incomunicável, com uma constelação de referências, palavras e imagens tão próprias à sua trajetória pessoal e ao seu imaginário, que o leitor se sente propositalmente fechado à possibilidade de sentido: tem-se uma experiência de sons, imagens e referências cujo nexo muitas vezes parece ser premeditadamente negado ao leitor. Pode ser apenas uma leitura equivocada de minha parte, mas sempre me pareceu que essa era uma característica importante de seu trabalho de mais longa data: uma espécie de barreira simbólica ao leitor, que impossibilita uma compreensão – digamos – tradicional dos signos, mas que aponta para uma compreensão de outra ordem, a da exclusão ao sentido. Como foi o processo para recriar essa constelação de signos tão peculiares em outras línguas, como o Inglês, o Francês e o Alemão?

RA: Para começar, um depoimento pessoal a propósito da suposta barreira simbólica que esse ou aquele poeta impõe ao leitor. A primeira vez que li João Cabral não gostei, quase desisti. À época me pareceu algo completamente sem poesia, duro, opaco. Resolvi deixar pra lá. Mas o problema é que o meu repertório, as leituras e minha concepção de poesia não suportavam aquele tipo de linguagem; depois fui ampliando meu estoque de vozes e dicções poéticas e, por fim, pude entender e fruir a proposta da poesia do pernambucano. Sei que o exemplo é pessoal demais, mas talvez sirva para explicar a importância do conhecimento, amplo o quanto possível, da diversidade de propostas de linguagem para o tópico do texto fechado/aberto. Ao contrário do que se imagina, as portas do poema aparentemente impenetrável estão sempre abertas. Mas só o desocupado lector sabe disso. O leitor obediente, com o objetivo de superestimar seus esforços, encarece o suposto hermetismo do texto. Com efeito, há poemas que, a par de sua relativa incomunicabilidade, atormentam a sensibilidade do leitor. Esses poemas causam tal efeito porque são menos aderentes a uma vocação mimética ou referencial. De maneira geral, os poemas desta vertente são entendidos como peças mal resolvidas e/ou herméticas. Na realidade, poemas com tais características indicam apenas uma forma de representação do signo estético-literário. Representam uma sua dimensão ou possibilidade. As linguagens às vezes se apresentam mais ou menos opacas. A opacidade mais radical transmite uma informação estética diferente e que é específica a esta condição (ou tensão) da linguagem, isto é, trata-se de um trobar clus em relação a um trobar, por assim dizer, mais aberto à esperança do leitor. Se essa pequena distinção não for levada em consideração, então a poesia do Mallarmé de Un Coup de Dés (1897) poderá ser considerada de menor importância, por exemplo, em relação à poesia de Morte e Vida Severina (1967) de João Cabral de Melo Neto. Entretanto, nenhum desses modos discursivos é superior/inferior ao outro. Apenas nos deparamos frente a duas tendências de agenciamento da função estética da linguagem.
Com relação às traduções de meus poemas para o inglês, francês e alemão, preciso dizer que fiquei satisfeito. Tive a sorte de poder dialogar com os tradutores ajudando na compreensão de alguns sentidos mais complicados. Dos cinco só me encontrei pessoalmente com um deles, Niyi Afolabi (professor nigeriano da Universidade do Texas) que esteve no Brasil em 2007, se não me engano. Junto com Afolabi, a brasileira Isis B. Costa (professora na Universidade Estadual de Ohio) e Reetika Vazirani (1962-2003) formam o grupo de tradutores que verteram meus poemas para o inglês. Desde de 1991 até aqui, a revista Dichtungsring[4] vem publicando meus poemas (principalmente os visuais). Ines Hagemeyer, editora de revista, traduziu alguns poemas meus (os verbais, naturalmente) para o alemão. Graças a um largo tempo em que Ines viveu no Uruguai – portanto aprendeu a falar espanhol –, é que foi possível nos comunicarmos. E sempre através de cartas e emails. Com Ines Hagemeyer revivo essa experiência maravilhosa de escrever cartas. Às vezes ela me envia cartões postais. E recentemente, tive a imensa alegria de ver alguns poemas meus, traduzidos por Patrick Quillier, em Retendre la corde vocale: anthologie de poésie brésilienne vivante (2016).  A obra foi organizada e traduzida por Patrick Quillier, poeta e ensaísta.  Quillier, além de Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Nice, é organizador e um dos tradutores de Œuvres poétiques (2001) de Fernando Pessoa lançada na coleção La Pléiade da editora Gallimard. Conversei e converso com Quillier sempre através do facebook messenger. Uma pessoa muito gentil. Tradutor rápido e inteligente.

LA: Fiquei feliz ao ler seus poemas em outras línguas e sentir que, de modo geral, a poesia continua ali. Os ritmos às vezes são outros; às vezes se perde algum jogo de palavras; mas, de alguma forma, a potência dos recursos poéticos (o som, as imagens, a interação entre as várias mudanças de voz e de narrativa) colabora para que a poesia renasça em outra língua, ainda de modo poderoso. Algo que notei, entretanto, foi que se trata de traduções que buscam ao máximo, dentro do que é possível sem comprometer os efeitos poéticos do texto, atingir a literalidade. É curioso, de certa forma, que sua poesia, tão experimental e inovadora, seja traduzida de uma maneira quase acadêmica. Ao mesmo tempo, é compreensível que se prefira, ao traduzir pela primeira vez um texto para uma língua estrangeira, oferecer para o leitor uma tradução informativa, literal, não ousada. Porém, vencido esse momento inicial, como você imagina uma boa tradução de sua poesia? Quais os elementos que você julga necessários para serem mantidos? Quanto seria possível alterar, na forma e no conteúdo, para se produzir uma experiência análoga, conquanto distinta em seus signos?

RA: Pode ser, sim, que algumas traduções carreguem essa característica de serem pouco ousadas, mas eu atribuo isso ao fato de que elas cumprem uma função mais de divulgação, de primeiro contato do leitor estrangeiro com minha poesia. São sempre poemas esparsos que são traduzidos. Um apanhado, algo como um aceno: “preste atenção nesse poeta”. Como eu imagino uma boa tradução: em primeiro lugar, uma boa tradução de minha poesia, me parece, deveria abarcar um conjunto mais significativo de poemas, deveria ser um livro completo. A tradução não pode perder de vista os valores formais, as hesitações de som e sentido, de minha poesia: buscar as equivalências na língua de chegada. Gosto de um aforismo sobre a tarefa tradutória do Roman Jakobson, diz ele que é: “algo que envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes”. A “mensagem” é uma espécie de aroma que surtirá desse novo arranjo do código. Quanto é possível alterar na forma e no conteúdo? Não sei muito bem. Acho que isso vai depender muito da capacidade e da sensibilidade poética do tradutor; o tradutor sabe que vai entrar nesse jogo para perder aqui e ganhar acolá e vice-versa. No meu caso, se ele não perder muito no que toca às questões da forma, ficarei satisfeito.

LA: Pensando na tradução de modo mais amplo, a partir da perspectiva ricoeuriana de tradução como também uma função interna à própria língua, que pode se traduzir de modo perifrástico e dizer a “mesma coisa” de formas diferentes, às vezes penso na análise, na interpretação e na crítica também como formas de tradução. O crítico tem a oportunidade de conduzir o leitor pelas zonas mais elusivas de um texto e ajudá-lo a fazer uma travessia análoga à almejada pelo tradutor, ainda que por vias diferentes. Você tem uma longa carreira como crítico ensaísta e é sempre procurado para escrever a respeito das obras de poetas tanto novos quanto já consagrados. Algo que penso ser bastante peculiar da sua crítica é que você, também ali, não facilita o caminho do leitor, dando respostas; mas, antes, parece preocupar-se em apontar os terrenos incertos, as perguntas veladas pelas quais um leitor incauto passa desapercebido. Em suma, nessa tarefa, ao que me parece, você torna conspícuas as camadas de sentido do texto sem, contudo, simplificá-las ou solucioná-las. Estou perto ou passei longe do alvo? Como é sua relação com essa tarefa de traduzir os outros por meio crítica?

RA: Do meu ponto de vista você acertou na mosca. Não vou conferir agora, mas estou quase certo de que Augusto de Campos, a propósito das ideias de Pound (1885-1972) acerca da arte da tradução, diz algo parecido. Segundo o poeta concreto, Ezra Pound considerava a tradução como um tipo especial de crítica e do mesmo modo considerava possível fazer crítica via música, isto é, um poema pode ser testado em sua eficiência estética quando tentamos colocar música em seu andamento. Resumidamente, se música e poema se ajustarem bem, então o poema é bom. Parece que Pound fez experiências desse tipo com poemas de Guido Cavalcanti (1255-1300). O que isso quer dizer? Em primeiro lugar que as formas críticas são múltiplas. Em algum sentido a adaptação (a tradução) fílmica de um romance é sempre crítica da poética da demora que caracteriza esse gênero. Porque a síntese visual, a rapidez do cinema se interessa apenas pelos momentos de máxima intensidade da obra transposta, sugerindo o restante do entrecho narrativo. Em segundo lugar, porque a crítica é dialógica, aproximativa e provisória como a tradução. A próxima leitura, a próxima tradução, desvelarão, na medida em que se colocarem em relação com as demais leituras e versões, outras camadas sígnicas da obra-objeto. Embora o exercício da crítica literária – que não é senão uma forma de fazer relações sígnicas e de interlocução parcial a partir de um objeto verbal construído, seja sob que motivação social, individual ou metafísica, enfim, desde os contornos de uma objetividade em perspectiva ou, ainda, desde uma subjetividade tornada precisa: o poema mesmo, coesão fundo-forma –, enfim, embora essa crítica me interesse muito, sei que se trata de um texto-gesto segundo, subsidiário, uma forma discursiva circunscrita a margear os rastros da linguagem do poeta (se não soasse retrô eu poderia dizer genericamente “do artista”, envolvendo outros modos de expressão). Talvez me acusem de reducionismo, mas, encurtando o caminho, prefiro concordar com a ideia de que a crítica é tão-só mais uma forma de paratexto, ou seja, no sentido em que, segundo Gérard Genette, “o ‘paratexto’ consiste em toda série de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – mensagens como anúncios, sobrecapa, títulos, subtítulos, introdução, resenhas, e assim por diante” (apud Umberto Eco). Anoto à margem: o paratexto ajuda tanto a explicar, como a enublar determinado texto ou evento. Com isso quero dizer que a crítica (o mesmo vale para a tradução) não precisa (ou nem consegue) ser sempre desanuviadora ou capaz de pôr tudo às claras na economia significante do texto. Meu livro Decupagens assim (2012) constitui a primeira reunião do meu exercício crítico. Hoje já tenho material para um próximo conjunto de ensaios, espero publicar tudo tão logo seja possível.

LA: Ainda sobre crítica, qual é sua relação com a crítica feita a seus trabalhos? Ela tem ajudado a fazer essa travessia do leitor entre texto e sentido(s possíveis)? Você vê alguma diferença notável entre a crítica que recebe dentro do país e a que recebe no exterior? Onde sente que sua obra é melhor traduzida em forma crítica?

RA: Ser criticado é como ser lido, quase a mesma coisa; a crítica trata-se de um modo mais focado de ler. Sim, meu trabalho tem sido objeto de estudos e de críticas e isso me deixa muito contente, principalmente pela qualidade das abordagens. Um exemplo disso é estudo de Prisca Agustoni, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que recebeu o Prêmio Capes de Teses pela tese de doutorado: “O Atlântico em Movimento: travessia, trânsito e transferência de signos entre África e Brasil na poesia contemporânea em Língua Portuguesa”. Prisca analisou, na produção poética de autores africanos e brasileiros contemporâneos, elementos diaspóricos. Seu trabalho destaca como a estética da diáspora negra interfere na produção poética contemporânea de alguns poetas de língua portuguesa. Prisca analisou tanto a minha, como produção do Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira; além dos angolanos Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho; e do moçambicano: Luís Carlos Patraquim. Mas, se considerarmos o sentido fraco com que o senso comum entende a crítica, ou seja, no sentido em que “crítica” sugere algo de desfavorável, devo dizer que ainda não sei o que significa isto. Não estou sendo arrogante. Até agora, quando alguém me “critica”, isso tem a ver com minha atividade crítica; os autores reagem defensivamente e com certa revolta, como se eu fosse um traidor da irmandade. Fazer crítica apontando problemas se limita, hoje em dia, com o gesto reativo do sujeito que ficou com o orgulho ferido. Esse escritor medíocre faz beicinho e sai da sala para chamar a atenção. Fora do país, a recepção crítica ao meu trabalho é boa, não posso me queixar. Os estudos, leituras e análises se restringem ao âmbito acadêmico, universidades dos Estados Unidos, Alemanha e França. Nos últimos anos comecei uma bela interlocução com alguns poetas e leitores argentinos.  Deixo o trabalho falar por si mesmo: o tempo das leituras: tanto a de prazer, como a de lápis em punho. Não sou de fazer o jogo do toma lá dá cá.

Dennys Silva-Reis (DSR): Alguma obra sua já foi adaptada para outra arte/mídia? Se sim, poderia nos dizer como foi essa “tradução” e sua percepção a respeito dela?

RA: Meu livro Homem ao Rubro (1983) ganhou uma transposição cênica, virou uma montagem híbrida de dança e teatro. O bailarino Robson Duarte e a atriz Ligia Rigo performatizaram oral e corporalmente os poemas. A direção geral foi de Camilo de Lélis. Fiquei muito contente com o resultado. Isso aconteceu no início da década de 1990.

DSR: Ronald, em que medida você acha que é possível ver a tradução como uma prática da diáspora negra?

RA: Não tenho uma ideia muito precisa a respeito dessa questão. Mas posso ensaiar algo. Falamos em “diáspora negra” como se soubéssemos o que de fato isso significa. Confesso que eu nunca estudei o assunto o suficiente. Acho que é bastante complexo: o drama ou a aventura da diáspora interfere no e transfigura o ambiente de chegada, isto é, o diaspórico não é algo que se aclimata para, por exemplo, apenas fazer sobreviver um essencialismo ou uma nostalgia de partida. Se interpretarmos “tradução” em sentido bem amplo, então talvez a questão faça algum sentido, pois a experiência diaspórica supõe transações, transes, transas – metáforas da operação tradutória. Com esses termos também evoco o título de um livro de poemas traduzidos do poeta José Lino Grünewald. Entretanto, eu recomendaria, a propósito do tema, a leitura de Traduzindo no Atlântico negro: cartas náuticas afrodiaspóricas para travessias literárias (Editora Ogum’s Toques Negros, 2017), obra organizada pela tradutora e pesquisadora Denise Carrascosa que enfeixa uma série de estudos dedicados à prática teórico-política da tradução no contexto das literaturas afrodiaspóricas.

DSR: Alguns estudiosos têm se queixado ultimamente a respeito das políticas públicas de tradução no exterior, especialmente a da Biblioteca Nacional [a saber, Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior]. Uma das queixas é que a literatura tem sido representada majoritariamente por autores não-negros – sendo Machado de Assis o único autor negro traduzido neste âmbito da esfera pública. Em contrapartida, uma autora como Carolina de Jesus já foi traduzida em mais de 13 línguas. Como você vê esse embate público “quase” político-ideológico?

RA: Entendo que Machado de Assis, no que diz respeito à recepção estrangeira de sua obra, ainda não é encarado como um escritor negro, isto é, isso parece ser algo secundário. Ele é um novo clássico da América do Sul que começa a ser exportado a um público mais refinado. Sua condição de negro será considerada aos poucos. É como vem acontecendo no Brasil; os especialistas machadianos são muito conservadores. O fenômeno Carolina de Jesus funciona, para a audiência de outros países, como uma espécie documento da vida na favela, um entretenimento à curiosidade do estrangeiro médio.

DSR: Percebe-se que no domínio da tradução audiovisual e, especificamente, nos domínios culturais do cinema e romance gráfico – duas áreas com ampla receptividade no Brasil e com mais de 80% de material traduzido – poucos são os autores e cineastas negros conhecidos do público brasileiro, especialmente, oriundos da própria América Latina. Em que medida você como crítico cultural poderia ou não ver nesse âmbito da tradução uma falta de prática da diáspora?

RA: Eu vejo isso como mais uma forma de apagamento e exclusão das possibilidades criativas e intelectuais que os negros podem oferecer ao pensamento brasileiro. Mais do que uma “falta de prática” do que quer que seja, trata-se antes de um impedimento veladamente arquitetado de toda e qualquer prática intelectual-inventiva levada a cabo por negros.

DSR: Abdias do Nascimento em sua obra O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista (1980) entre seus muitos questionamentos destacou a ausência de uma literatura da intelligentsia negra no Brasil. Sabe-se que no Brasil os discursos de intelectuais negros chegam majoritariamente de forma indireta - via escritos acadêmicos, discursos orais ou textos midiáticos que os referenciam. Ultimamente, alguns textos começaram a ser disponibilizados na íntegra e em português, mas mesmo assim por editoras pequenas ou engajadas na causa diaspórica. Além do racismo de pele, é possível notar algum racismo intelectual no Brasil? Qual seu ponto de vista?

RA: Racismo de pele versus racismo intelectual, como assim? Estamos falando de racismo anti-negro e ponto. O racismo não é apenas epidérmico, ele é epistêmico. Há um continuado epistemicídio do ser e/ou do vir-a-ser negro. Há tão somente variantes do mesmo.

DSR: Tanto na história quanto no presente mercado da tradução, encontrar agentes negros atuantes nesse domínio aqui no Brasil parece ser algo ainda não recorrente. Você conhece tradutores e/ou intérpretes negros? Se sim, saberia elucidar algum fato ou apreciação sobre eles que ao seu ver é marcante?

RA: A professora Denise Carrascosa, já mencionada em resposta acima, coordena projeto de pesquisa na Universidade Federal da Bahia cujo objetivo é cartografar narrativas da diáspora negra a serem traduzidas.

DSR: Ronald, você se considera um intelectual negro? Qual a importância dessa constatação para você pessoalmente?

RA: Um intelectual de verdade se sente implicado nos logros e nas contradições que ele investiga e/ou denuncia. Além disso, ele não deve temer pensar nos limites de suas capacidades; é importante pensar contra si mesmo: arte e pensamento são riscos. O predicado que vem após à minha concepção de intelectual, isto é, “negro”, “gaúcho”, “latino-americano”, não é irrelevante, mas apenas secundário.

DSR: Se você pudesse ditar as próximas traduções de uma editora, quais seriam as mais urgentes para o público brasileiro e porquê?

RA: Eu gostaria de ver um conjunto significativo de traduções dos poemas de Langston Hughes e de Guido Cavalcanti. Porque são excelentes poetas.

LA: Ronald, agradecemos imensamente sua disponibilidade para esta entrevista, que termino abrindo espaço para você comentar a respeito de algo que tenhamos deixado passar batido ao longo de nossa conversa sobre tradução.

RA: Não tenho nada a acrescentar, Leonardo. Dizem que mesmo um show muito bom pode ser encurtado em 15 minutos. Espero que o leitor concorde que fizemos um bom show. Brincadeira. Só posso agradecer pela oportunidade de debater com você essas questões que me interessam desde sempre. Foi um prazer.

Referências

AUGUSTO, Ronald. À Ipásia que o espera. Salvador: Editora Ogum’s Toques, 2016
_____. Cair de Costas. Poesia reunida. Porto Alegre: Editora Éblis, 2012.
_____. Confissões Aplicadas. Porto Alegre: Editora Ameop, 2004.
_____. Decupagens assim. Porto Alegre: Letras Contemporâneas, 2012.
_____. Homem ao Rubro. Porto Alegre: Edição Grupo Pró-texto, 1983.
_____. Kânhamo. Porto Alegre: Ronald Augusto, 1987,
_____. No assoalho duro. Porto Alegre: Editora Éblis, 2007.
_____. (org.) Oliveira Silveira: Obra Reunida. Organização, introdução e notas. Porto
Alegre: Corag, 2012.
_____. Vá de Valha. Porto Alegre: Coleção Petit Poa (SMC), 1992.




[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016).
[2] Doutorando em Literatura (POSLIT) e mestre em Estudos da Tradução (POSTRAD) pela Universidade de Brasília. Seus principais eixos de trabalho são: Literatura Francófona, História da Tradução e Tradução intersemiótica. Igualmente é tradutor e cronista em seu blog Historiografia da tradução no Brasil (http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). E-mail: reisdennys@gmail.com. Brasília, Brasil. 
[3] Mestre e Doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, é professor de Língua e Literatura Grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde realiza um trabalho de reconstrução rítmica e musical da poesia grega antiga.
[4] https://dichtungsring.org/






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