O
princípio da tolerância enquanto fachada (II)
Ronald
Augusto[1]
Luta
pela estima
Em certa medida, ser tolerado não deixa
de significar uma experiência de desrespeito. Tomando como referência as
atualizações que Honneth faz do pensamento hegeliano, é possível dizer que a
luta por reconhecimento não é bem uma luta para ser tolerado, porém uma luta
para ser amado, para ser estimado. Axel Honneth extrai do “modelo de Hegel” a plataforma da “tese
especulativa segundo a qual a formação do Eu está ligada à pressuposição do
reconhecimento recíproco entre dois sujeitos”[2].
Isto é, quando dois indivíduos se confrontam (o verbo confrontar é empregado aqui de acordo com a acepção relativa a
estabelecer comparação entre; cotejar), cada um deles tem a possibilidade de
ver confirmada a sua autonomia por seu respectivo defrontante. Honneth
argumenta que eles têm a chance de chegar “a uma compreensão de si mesmos como
um Eu autonomamente agente e individuado”. A figura do tolerante minimalista aqui tematizada, não parece
experimentar esse estado de reciprocidade em que as partes só reconhecem sua
autonomia graças a uma intersubjetividade crítica e autocrítica.
Para Honneth, se o modelo de Hegel (ainda bastante
especulativo) pode ser admitido como insumo para uma teoria social de teor
normativo, então é preciso levar a efeito uma reconstrução de sua tese à luz de
uma psicologia social empiricamente sustentada. Sua investigação leva em
consideração as premissas da teoria da intersubjetividade de Hegel que lhe
permitem afirmar a existência de formas diversas de reconhecimento recíproco e
que elas se distinguem umas das outras segundo o grau de autonomia facultado ao
sujeito em cada caso ou etapa. Hegel oferece os indícios de que o “amor, o
“direito” e, finalmente, a “eticidade”, são vetores de uma série de três
relações de reconhecimento através dos quais “os indivíduos se confirmam
reciprocamente como pessoas autônomas e individuadas, em uma medida cada vez
maior”[3].
Axel Honneth explora a premissa fundamental de Hegel segundo
a qual “a formação prática da identidade humana pressupõe a experiência do
reconhecimento intersubjetivo”[4],
isto é, a certeza da particularidade individual
de si de um sujeito deve ser entendida como “algo reconhecido” por outro
sujeito, e assim, num jogo de espelhismo, o mesmo processo é experimentado por
esse outro. Sobre essa pedra fundamental Hegel vai estabelecer as distinções e
as questões específicas de três formas de reconhecimento recíproco, a saber, a
dedicação emotiva, cuja realização o senso comum identifica tanto nas relações
amorosas (a família e/ou o par amoroso), como nas relações de amizade; o
reconhecimento jurídico, que diz respeito aos direitos individuais e sociais do
sujeito que, por sua vez, se relacionam a uma perspectiva histórica de
ampliação de direitos; e por fim, o assentimento solidário ou a estima social
onde estão em jogo as capacidades e propriedades do indivíduo na sua interação
com uma comunidade de valores na qual precisa encontrar respeito na troca
intersubjetiva e, ao mesmo tempo, determinar sua autoestima. Esses “padrões de
reconhecimento intersubjetivo” são, grosso modo, meros desdobramentos ou
transfigurações da dedicação emotiva-amorosa, de modo que os padrões do direito
e da solidariedade devem bastante ao padrão do amor, pois em sua
progressividade por etapas, aumentam tanto a autonomia subjetiva do indivíduo,
quanto o respeito recíproco. Honneth vai procurar nessa dinâmica as condições
de possibilidade de um desenvolvimento moral dos sujeitos implicados.
No
que diz respeito à possibilidade de a tolerância, presa à chave do desde-que, sucumbir a uma forma de
desrespeito, os dois últimos padrões, o do reconhecimento jurídico e o padrão
intersubjetivo da solidariedade – pelo fato de desbordarem dos limites
individual e familiar –, podem nos servir como situações em que a estima
consegue cancelar a relação de intransigência assimétrica entre tolerante e
tolerado. No reconhecimento jurídico, cada homem, do ponto de vista de Hegel,
se reconhece e quer ser tratado como um ser racional, como livre, como pessoa;
cada sujeito autônomo e individuado tem o direito de ser reconhecido nesses
termos porque ele concorda em obedecer a um universal e à lei, isto é, ele “se
porta em relação aos outros de uma maneira universalmente válida, reconhece-os
como o que ele próprio quer valer – como livre, como pessoa”[5].
Já através do padrão intersubjetivo da solidariedade, que aponta para a
eticidade, cada sujeito luta pela estima social de modo que lhe seja possível
referir-se positivamente não só a suas propriedades e capacidades concretas,
mas de igual modo a de outros indivíduos do seu grupo. Em outras palavras, os
sujeitos “só podem se estimar mutuamente como pessoas individualizadas sob a
condição de partilharem a orientação pelos valores e objetivos que lhes
sinalizam reciprocamente o significado ou a contribuição de suas propriedades
pessoais para a vida do respectivo outro”[6].
Passando da esfera dos sujeitos para os conflitos coletivos atinentes à
dinâmica da intersubjetividade social, isso talvez venha a calhar em um
processo de autocompreensão cultural em que um grupo afirma-se perante o outro sem que nenhum deles, à
diferença da prática de tolerar, deixe de ter interesse recíproco por seus
modos distintos de experiências de vida, uma vez que o que está pressuposto na
solidariedade da comunidade cultural indica que os grupos sociais se estimam
entre si de maneira simétrica. O sentimento de solidariedade, ou melhor, o
padrão da solidariedade no registro dos encontros interpessoais dignos e livres
de desrespeito não pode se basear na pressuposição da tolerância como panaceia moral.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros,
Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blgspot.com
[2] HONNETH,
Axel. Luta por reconhecimento: a
gramática moral dos conflitos sociais; tradução de Luiz Lapa; apresentação
de Marcos Nobre. São Paulo: Editora 34, 2009 (2ª edição). p. 119
Comentários