O princípio da tolerância enquanto
fachada (I)
Ronald Augusto[1]
Tolerância
como desde-que
O foco desta sequência de três artigos que divido com o
leitor é apresentar algumas questões ou hipóteses relativas ao princípio da
tolerância, no sentido de tentar desvelar como esse princípio, quando
entremeado à dinâmica das interações dos grupos sociais e dos indivíduos,
assume às vezes aspectos de desrespeito ou, mesmo, de franca intolerância. É
preciso observar que em outras circunstâncias – quando se considera, por
exemplo, a liberdade de expressão ou o direito à expressão de opiniões – a
presença do princípio da tolerância, nesses casos, não parece revelar-se
insuficiente. Pelo contrário, a tolerância serve aí de condição básica, de
ponto de partida mínimo ao diálogo e sua continuação. Em outras palavras, se é
verdade que um indivíduo almeja que suas ideias e opiniões sejam
consideradas boas, também é verdade que para ele não será de fundamental
importância que elas eventualmente sejam apenas toleradas, uma vez que algumas
ideias podem ser estranhas à maioria das pessoas, mas, segundo o princípio da
tolerância, elas devem ser minimamente ouvidas e respeitadas. Entretanto, o mesmo não acontecerá
se o indivíduo for tolerado ao invés de ser reconhecido ou estimado, porque
ser tolerado sugere que esse indivíduo e seu modo de ser são um incômodo, um
peso para outrem ou para outro grupo social. Assim, é nesta perspectiva que o princípio da tolerância
pode revelar-se insuficiente. E a crítica à tolerância, portanto, deve ser
empreendida na direção de demarcar tanto os seus limites, quanto as suas
significações.
Como preparação do terreno, podemos citar, ainda que de
passagem e para efeito de registro, algumas significações de tolerância,
inclusive as mais prosaicas, como por exemplo: a qualidade daquela
pessoa que desculpa certas falhas ou erros, feito a professora que sempre se
mostra tolerante com os atrasos dos alunos. Não raro toleramos travessuras das
crianças devido à sua notória falta de experiência acerca das regras do mundo
adulto. A qualidade de tolerar ou de suportar algo também se aplica à
tolerância ou não de determinados alimentos; tolerar/suportar ou não certo
ritmo de trabalho. A tolerância ou capacidade para tolerar também indica:
suportar
com indulgência, aceitar, consentir, permitir tacitamente, não impedir.
Entretanto, o significado de tolerância que mais desperta o interesse do senso
comum incorpora uma tonalidade virtuosa, representando mesmo uma ação de algum
modo exemplar ou recomendável, por exemplo: o tolerante assimila, suporta o
temperamento de uma pessoa ou, ainda, ele tolera/aceita (ao menos inicialmente)
as ideias de outra pessoa. O senso comum afirma que o amor é incondicional,
assim, do objeto do nosso desejo toleramos tudo.
O conceito de tolerância se presta, além disso, a uma série
de aproximações com a virtude da paciência (Spinoza apud Marcelo Dascal), pois admite também acepções como: suportar um
fardo ou a qualidade da constância/resistência de suportar resignadamente algo
que produz sofrimento e/ou desconforto. Aqui, o significado de tolerância segue
o modelo
do pathos hagiológico: o martírio, o
apedrejamento, as flechas pontiagudas que o santo deve suportar sem reclamar. E
quanto menos fadiga apresentar sua tolerância ao sofrimento que lhe é imposto,
mais superestimados serão seus predicados moral e físico.
No artigo “Tolerância e interpretação”[2], Marcelo
Dascal menciona que a formalização do princípio de tolerância a partir de uma
acepção que envolve passividade frente ao “sofrimento”, representa uma redução
conceitual que com o passar do tempo foi se sedimentado no senso comum. De
outro modo, segundo o filósofo, os verbos tolerare
e tulli têm a mesma raiz cujo
significado é “levantar” – notar que se trata de um verbo transitivo que exige
complemento: algo/alguém levanta
alguém/algo. Isto é, tolerar não remeteria necessariamente a uma forma de
passividade, mas sim a uma atividade, a uma volição. Alguém delibera suportar.
Portanto, para todos os efeitos, encarecer o estado da passividade significaria
sequestrar à tolerância o que haveria nela de potencialmente virtuoso, já que
seria uma escolha levada a afeito por um indivíduo moralmente autônomo.
Talvez por estes indícios, em nossos dias, a menção ao princípio
de tolerância já traz em si mesma uma espécie de valor moral agregado que
parece dispensar qualquer questionamento com relação à sua efetividade ou
necessidade como atitude ética social e individual. Cumpre observar que até
aqui temos ressaltado o sentido de tolerância mais aceito pelo senso comum,
qual seja, o sentido em que esse princípio é interpretado como um mecanismo de
conciliação e suspensão de conflitos. A chamada cultura da tolerância nos permite, se não reconhecer, ao menos
lidar – mas sem perder uma espécie de “boa etiqueta” ou fair play –, com o direito, o comportamento e as opiniões
diferentes.
A tolerância, considerada
como um mecanismo de conciliação e suspensão de conflitos, se constitui em um
jogo de forças que não deixa de conter implicações paternalistas. Marcelo Dascal
analisa esse ponto controverso em um dos defensores da tolerância, John Stuard
Mill. De acordo com Dascal, no final do quarto capítulo de Sobre a Liberdade (1859), o filósofo inglês, ao abordar com
desprezo algumas características da religião dos mórmons, entre elas a
poligamia, defende o direito que eles têm de viver como bem lhes aprouver nos
lugares remotos que, com seus esforços, tornaram habitáveis. Para Mill, os mórmons podem ser tolerados
desde que não pratiquem atos de agressão contra outros grupos e facultem a liberdade
de movimento a quem desejar abandonar seu território. Isto é, Mill entende que
o mundo “civilizado” deve ser tolerante mesmo diante de costumes e crenças em que
o chamado bom senso não tenha sombra de dúvida de os considerar “errados”, mas
essas crenças precisam ser objeto de livre escolha de indivíduos que, de resto,
não podem usar da violência para impô-las. É possível concordar em parte com
Mill nesta questão. Todavia, Dascal se propõe a justificar a consideração de
Mill de outra forma.
Em primeiro lugar a
tolerância não se apresentaria mais como altaneiramente “permitindo” a
existência de crenças ou valores “estranhos” e “errados”. A crença parece ser a
de que o tolerante ouve e respeita opiniões diferentes das suas. Mas ouvir
opiniões diferentes é suficiente para que seja conferido a esse indivíduo o
predicado de ser tolerante? E se o indivíduo em seu íntimo – e enquanto se
mostra todo ouvidos a opiniões que lhe são apresentadas –, na verdade considera
inaceitáveis essas opiniões, ele segue sendo merecedor do predicado tolerante? De outra parte, o defensor da
tolerância não mais se colocaria na posição de quem, conhecendo a verdade,
estaria disposto generosamente a consentir que o outro mantivesse uma opinião
falsa, desde que esta não causasse prejuízos aos demais. Para Dascal, um modo
não paternalista de conceber a tolerância exige que o ocasional tolerante
admita que não detém o monopólio da verdade ou da moralidade, por isso ele
precisa não apenas respeitar as ideias diferentes das suas, mas inclusive
considerar a hipótese de que elas sejam tão morais e verdadeiras quanto as suas
próprias. Nesse quadro a tolerância
ultrapassa os limites de um princípio que Dascal define como minimalista, princípio este que tolera o
erro a partir da superioridade do “esclarecimento”, e alcança a condição de um
princípio maximalista através do qual
se reconhece a possibilidade de que o “tolerado” talvez tenha razão, e que,
portanto, suas ideias e atos merecem respeito
(itálico de Marcelo Dascal) e não apenas paciência.
Assim, enquanto princípio
minimalista a tolerância apela à ideia
de que o tolerante cultivado e de viés paternalista, e em que pese conheça a
verdade, se dispõe a admitir que o outro expresse uma opinião falsa, desde que
não prejudique a ordem social. Já no princípio maximalista, o tolerante pode colocar-se em relação e considerar
como razoável a hipótese de que ele mesmo não tem o controle da verdade ou da
moralidade em suas mãos. Ainda que o princípio maximalista confira à tolerância um significado mais positivo do
que a concepção minimalista, é
necessário refletir mais um pouco. Se levarmos em conta o significado da
tolerância segundo o qual ela indicaria a diferença ou a margem de erro
admissível em relação a uma medida ou a um padrão, então podemos afirmar que a tolerância parece ser moralmente
ambígua, porque dependendo da tensão (mínima ou máxima) exercida sobre o
conflito ela pode ter graus diferentes e até mesmo contraditórios. Isto é, a tolerância,
por via da interpretação do tolerante, pode falsear e ser seletiva. Neste
sentido, como estabelecer o gradiente ou o desde-que
da tolerância? Em outras palavras, esse gradiente – ou essa probabilidade de
fadiga da tolerância –, que está relacionado ao significado da suportabilidade
e do limite, legitima, quando certas condições se efetivam, sua repentina
transformação em intolerância. O tolerante se revela intrinsecamente
intolerante.
Duas situações no tocante à fadiga da tolerância ilustram à
maravilha a passagem do princípio maximalista
ao minimalista, isto é, a
passagem da tolerância à intolerância. A
primeira delas tem a ver com o episódio da imigração de haitianos para o Brasil
após o terrível terremoto de 2010 que destroçou aquele país e, em especial, a
cidade de Porto Príncipe. Inicialmente a reação de muitos brasileiros foi de
grande solidariedade (de apoio e suporte) aos refugiados haitianos, eles foram
acolhidos e, em boa medida, seguem sendo. Entretanto, passada a onda emocional ligada
à tragédia, começaram a surgir vários episódios de intolerância, cujas
motivações, sob a máscara de uma “injusta” transferência de empregos a
estrangeiros em prejuízo da mão de obra local, têm sido na verdade de índole
racial, de intolerância aos negros haitianos: versão xenófoba ao nosso racismo
que faz o brasileiro negro se sentir um forasteiro em seu país. A segunda
situação em que, sob a aparência da tolerância subjaz uma renitente intolerância,
é a que concerne ao modo contraditório como nossa sociedade se comporta com relação
às religiões de matriz africana. A antropologia e a história há muito tempo
registram essa dialética perversa e esquizofrênica, de devoção e ódio, que a
maioria dos brasileiros experimenta quando se trata de demarcar seu
envolvimento com tais práticas religiosas. Aparentemente reina a mais absoluta
tolerância: as pessoas, devotas inclusive de outras fés religiosas, sabem quais
são os seus orixás, checam seus destinos no jogo de búzios, lançam às águas de
Iemanjá barquinhos azuis com pedidos de saúde e paz, enfim, demonstram em
público aparente respeito e consideração seja ao Candomblé e à Umbanda, seja a
toda uma infinidade de outras crenças religiosas. Por outro lado, basta uma
objeção desinformada sobre, por exemplo, determinadas formas de sacrifício
ritual de animais, para que esses mesmos fiéis de ocasião revelem sua latente
intolerância e indisposição em relação a uma cultura religiosa da qual há
tempos vêm se apropriando de modo ligeiro e estereotipado.
Não obstante tais
contradições resultantes do racismo e do preconceito conjugados a afetos que
lhe são coextensivos, nas últimas décadas a aposta enfática na tolerância[3]
sugere a não problematização das condições pelas quais os que se prestam a
desenvolver esse princípio ou capacidade (cidadãos e instituições) acabam
demarcando o que conta como tolerância e de que modo e em que porções ela é
distribuída aos tolerados. Com efeito, Desidério Murcho em seu artigo “A pena
de morte”[4]
identifica esse sintoma da tolerância enquanto paradigma absoluto quando afirma
que o
mundo ocidental, no que toca à pena de capital, jamais experimentou um sistema
judicial tão tolerante: “A pena de morte foi banida da maior parte das
sociedades democráticas, ou existe apenas como figura jurídica que nunca se
aplica”. Temos aqui uma situação em que o
princípio da tolerância se mostra justo e eficaz, a par de ser também um
instrumento ético e algo prêt-à-porter,
aplicável e generalizável a diversidade dos conflitos. E a tolerância, assim
considerada, se mostra bastante coerente com o espírito do nosso tempo.
Locke (outro defensor aguerrido da tolerância enquanto
princípio minimalista), segundo
Marcelo Dascal, expressava sua noção de tolerância dizendo, por exemplo, que
aceitamos os loucos, mas os loucos são e seguirão sendo loucos, enquanto nós
conhecemos a verdade. A tolerância assim apresentada se limita a uma forma vaga
de solipsismo; podemos considerar esse virtual tolerante imaginado por Locke
como um sujeito incapaz de experimentos de imaginação projetiva, isto é, um
sujeito que não apenas nega validade ou se revela indiferente ao modo de ser do
outro, mas que também nega nesse modo de ser do outro a existência de algo que
permita a reconsideração de seus próprios juízos sobre as coisas. Esta
dificuldade sobre reconhecer o outro ou sobre o reconhecimento recíproco exige que
incorporemos à discussão as atualizações da Fenomenologia
do Espírito (1807) que Axel Honneth opera apoiado em determinadas ideias de
Hegel.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros,
Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blgspot.com
[3]
O Dia Internacional da
Tolerância foi criado em 1996, pela Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas (ONU). A ideia surgiu a partir do Ano das Nações Unidas para a
Tolerância, em 1995, que foi decidida e programada desde 1993, pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO.
Comentários