As topografias de Subir ao mural
Leonardo Antunes[1]
Subir ao mural (Editora Caseira, 2017), novo livro de Ronald
Augusto, apresenta uma união incomum de fatores: consegue ser uma porta de
entrada convidativa à obra do poeta, notavelmente desafiadora, e, ao mesmo
tempo, revela-se como um acontecimento novo dentro desse corpus, retomando poéticas consolidadas em seus livros anteriores e
renovando-as com espantosa naturalidade.
O livro se inicia de forma
despretensiosa, com um pequeno poema posto ao fim de uma página em branco:
um no inverno
Valeu a pena
esperar,
Mergulhado
na sombra quase gélida,
Até ver o
sol outra vez aparecer, caindo,
Nesse espaço
entre a copa e
O horizonte
mal delineado,
Com sua
chama exausta. Em boa hora.
A página em branco com o poema ao
fundo: esse uso do espaço negativo, aproveitado para acentuar a espera descrita
no poema, é apenas um dos jogos estéticos no projeto gráfico primoroso da
edição, tão artística quanto artesanal. Cabe mencionar a capa, em xilogravura,
também de autoria do editor, Gustavo Reginato, e o movimento dos poemas ao
longo das páginas, espelhando a subida que dá nome ao livro.
O lirismo do poema de entrada
estabelece certa conexão com o universo poético de À Ipásia que o espera (Ogum’s Toques, 2016), livro anterior em que
o poeta desenvolveu cenas cotidianas de temática amorosa com uma discursividade
pouco comum em sua obra. Essa poética acolhedora compõe parte dos poemas de Subir ao mural. Porém, esse caráter
aparentemente simples, pelo uso cuidadoso da linguagem cotidiana, aparece menos
aqui, prevalecendo uma notável riqueza de vocabulário e uma paleta
aparentemente inesgotável de artifícios poéticos:
sua jira
pelágica
parideira
de correntes
cuja rotina
soe arrastar
para a esquerda
o nauta e o
naufragado que
sucumbem à
vista da terra
tufo de
areia revolto no oco da onda
crustácea
tentáculos
entranhados
na fissura
da rocha submersa
nutriz da
água e da carne do coco
lisa cachaça
de banana
oleaje de longo de longe
enseada
a pelagem
azulina de onça oceânica
À luz da Ipásia e em contraste com seus projetos
mais herméticos, como Homem ao Rubro
(Grupo Pró-texto, 1993), nota-se aqui um nível intermediário de discursividade,
em que a parataxe e as quebras no fluxo do discurso ocorrem de modo tão natural
e harmonioso que não se pode imaginar a troca de um vocábulo sequer por outro.
Tudo dá a solene impressão de estar em seu devido lugar: cada assonância, cada
jogo de sentido, cada vocábulo raro, cada ênfase em uma palavra isolada num
verso ou deslocada em um enjambement
– tudo se encaixa num desenho raro.
Após esse
elo com a temática lírica do livro anterior, Subir ao mural nos leva para poemas de cunho mais político. Em
especial, destaco o poema abaixo, “octassílabos”, escrito, conforme seu título
indica, em versos de oito sílabas poéticas. O intuito de descrição topográfica,
visto nos poemas anteriores, aqui adquire um rumo de crítica social, que se
desvela com a mesma naturalidade vista nos poemas anteriores (e por isso mesmo
com enormes potencialidades poéticas):
octassílabos
erra em
ondas meu pensamento
pelos
ângulos do lugar
as paredes
brancas de nada
um corte
transversal, solar
as cortinas
se mantêm feias
esse
plissado industrial
essa cor, de
ordinário, pálida
dão a tudo
um quê de oficial
o rumo ar
condicionado
piso de
hospício sem ranhuras
ou de
laboratório clínico
quadrículo
infenso à cultura
no entanto
aqui a estudantada
faz o exame
vestibular
cumprindo
seu rito de classe
visando além
ser dr. k.
poucos
negros, quase nenhum,
entre os que
se curvam às provas
isso parece
confirmar:
não deviam
passar da porta.
Também em
metro fixo, o poeta nos oferece uma crítica religiosa em quatro quadras
rimadas, mas é nos dísticos abaixo, a meu ver, que o livro atinge seu ápice,
tanto em primor estético quanto em potência de significações. A crítica social
exposta se torna tão mais poderosa não só pela inclusão do eu-lírico no final
do poema mas principalmente pelos expedientes poéticos empregados. Note-se como
a sequência de recusas às tentativas de responder o problema posto vai criando
uma topografia do objeto do poema, com o ponto de vista se afastando até chegar
à definição, em um dístico emoldurado no início e no fim pelo nome da cidade:
“pelotas até cohab pestano / onde extremo o aeroporto é pelotas.” Ao longo do
poema, descontrói-se a imagem da cidade e também a discursividade do texto: ao
chegar na definição, a parataxe é tão áspera quanto a realidade descrita, que
se escancara nos três dísticos finais e culmina com a inserção do eu-lírico:
cohab pestano
onde é
pelotas, afinal de contas?
uns
concordam que é no laranjal.
ou que é ali
no mercado e suas imediações
a biblioteca
o quindim de nozes.
os doces
negros dos negros de pelotas
muitos juram
que é onde pelotas.
têm aqueles
que vão convencidos
de que
pelotas é algo dos ramil.
de que
pelotas agora é outra
que é outra
onde angélica freitas.
onde é giba
giba, afinal, pelotas?
é ainda
pelotas ao final de tantas?
pelotas até
cohab pestano
onde extremo
o aeroporto é pelotas.
esgoto a céu
aberto
onde o
pestano a contragosto é pelotas.
onde é o
povo negro no pestano
a poeira das
ruas de terra e chão.
o ir e vir
do povo do pestano
onde afinal
é pelotas, a que eu sei.
Em síntese
e como a pequena amostragem pode indicar para a leitora e o leitor, Subir ao mural cumpre a difícil tarefa
de agregar novidades a uma obra já ampla e atestada pela crítica, tarefa que só
é possível quando executada por uma dupla consciência, num movimento de ir ao
passado para enxergar o presente, e de enxergar o presente sem perder de vista
o passado.
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