A cachaça e a ressaca do
futebol
Ronald
Augusto[1]
Como já estamos cansados
de saber, a temporada futebolística começa com os campeonatos estaduais. Por
uma estúpida coincidência, casos de violência dentro e fora das quatro linhas
têm início na mesma época. Não é mesmo surpreendente? Em função disso,
inicialmente, convido o leitor a refletir sobre o problema do torcedor-tipo de futebol.
Grosso modo ele é racista, homofóbico, misógino. O torcedor é covarde. Sua
suposta valentia se deve à multidão da qual se nutre, nela o torcedor está
imerso e protegido. Ele é um pequeno déspota. O torcedor é uma criança grande e
mimada, isto é, um sem-educação que não sabe lidar com o revés ou com a
frustração. Ofensivo, intimidador, desrespeitoso, são alguns dos predicados do torcedor.
O torcedor é um devoto de uma religião de bárbaros. O torcedor é um problema
social. Ele não pensa, apenas reage. O torcedor não sabe fazer distinções. Essa
espécie de torcedor é um tremendo acidente na direção do futebol enquanto
experiência cultural.
O foco do comentário,
para ser aparentemente mais justo, nem precisaria evocar o eventual jogador que
perde a cabeça e provoca a sua ou a torcida adversária; mas, por outro lado, o
comentário seria incompleto se se detivesse apenas nessa coisa chamada
“torcedor”, ele mesmo. No quadro dos fatos futebolísticos essa ou aquela
atitude agressiva do jogador talvez nem deva ser encarada como uma
excepcionalidade, porém infelizmente às vezes isso não merece um debate mais
profundo. O que sobra é muita retórica de comentaristas e, de resto, em
prejuízo daquilo que de fato interessa, ou seja, o problema intolerável e persistente
da violenta “cultura do futebol”, sistema de valores em que os envolvidos
naturalizam com cinismo risonho toda sorte de desrespeitos porque – mas por que
razão mesmo? – se pressupõe que devemos entender as repetitivas situações
agressivas como meras “sublimações” de um instinto de guerra ou de combate,
hoje supostamente banido das relações civilizadas. Ora, esse psicologismo de
almanaque já não é suficiente para explicar a violência do futebol. A
contragosto do nosso desejo, precisamos admitir que não somos tão diferentes do
torcedor preconceituoso e do jogador criador de caso.
Entendo que torcedor e
jogador não são uma e a mesma coisa, se isso fosse verdade, e graças a uma
fabulosa empatia, eles se entenderiam na riqueza e na pobreza dos desempenhos e
resultados. O que me espanta, mas nem tanto, é a dificuldade que temos de fazer
o movimento da autorreflexão com relação ao papel de torcedor que até aqui
viemos desempenhando, afinal de contas, somos, cada um de nós, uma instância
dessa figura. Aceitamos sem mais que é tudo paixão. Ainda bem que a contrapelo desse
tipo de pensamento retranqueiro, isto é, do futebol concebido como refém do
sangue nos olhos e do gesto reativo, há gente como Marcelo Carvalho que
compreende que um pouco de razão não vai tirar a graça do futebol, e a partir
desse entendimento cria, por exemplo, um fórum importante como o Observatórioda Discriminação Racial no Futebol. A quem interessa que o futebol não perca o
folclórico “tempero” da barbárie e do ódio ao outro? Valeu, Marcelo, o
Observatório cumpre uma função saneadora e crítica na perspectiva de que o
futebol, enquanto prodigioso espaço cultural, evolua de fato.
Por outro lado, e dando corda ao tópico do
início, apontar para o jogador impulsivo ao mesmo tempo que se cobra dele o
gesto exemplar, parece ser mais cômodo do que se reconhecer, ainda que
brevemente, nesse torcedor irracional (não importa o clube do seu coração) que
está sempre à beira de fazer e de vociferar as piores coisas diante do menor
revés relacionado ao seu pathos enquanto
convenção, isto é, um grupo de 11 caras brincando com uma bola com a intenção
de provar que são melhores do que um outro grupo de 11 caras atrás da mesma
bola. Afinal, a virulenta “cultura do futebol” – tolerada até aqui e cuja
ressaca é repugnante em muitos casos –, essa cachaça mal destilada nos é
servida há tempos sem que ninguém se pergunte se há alguma alternativa à
disposição na carta de bebidas.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico,
letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012) e Decupagens Assim (2012). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
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